A indústria pornô e o filme Pleasure
A objetificação e a desumanização feminina para o prazer masculino
Pleasure (2021), dirigido pela sueca Ninja Thyberg e disponível no MUBI, com protagonismo de Sofia Kappel, é uma verdadeira utilidade para expor o lado sombrio da indústria pornô — se é que tem algum lado que não seja sombrio nesse mundo de ilusão e fetiches sexuais. Atribuir à indústria pornô o nome de erótico ou apenas conteúdo adulto suaviza, e muito, o que de fato existe ali. A indústria pornô se baseia na dominação masculina e na desumanização sexual das mulheres. Toda a subjetividade de uma atriz pornô é transformada em gemidos, bocas sugadoras, seios apertáveis e orifícios penetráveis. Quando olho para indústria pornô — assim como olho para a prostituição — que para alguns é também chamada de uma “profissão como qualquer outra” —, não consigo ver nada além de uma ótima oportunidade para a objetificação de corpos femininos, a deturpação do desejo e o poder e domínio dos homens que os compram e consomem.
Homens compram e consomem corpos femininos. E a linha entre prazer e abuso é bem tênue. Entre a coação e o consentimento, também.
Nenhuma mulher, por mais que goste de sexo, por mais empoderada e livre sexualmente que seja, sonha com a vida de atriz pornô. E não acho que seja um dinheiro fácil. Não deve ser nada fácil. E muito menos simples. e o filme Pleasure mostra um pouco como funciona.
Nesse artigo do QG Feminista, de 2019, separei esses trechos:
Quando se trata de mulheres que ingressam na indústria do sexo, a maioria é abordada por predadores que visam mulheres jovens, ingênuas e com dificuldades financeiras.
(…)
A indústria pornográfica em geral fatura mais de US$ 13 bilhões todos os anos. Por contexto, isso é mais do que Hollywood, que fatura cerca de US$ 8 bilhões. Isso também é mais do que Microsoft, Google, Amazon, eBay, Yahoo, Apple e Netflix juntos.
Apesar das mulheres serem a principal mercadoria, um líder masculino geralmente ganha mais dinheiro controlando as mulheres.
Isso não te soa terrível? Controle de corpos e mentes femininas por homens sedentos por dinheiro e manipulação. Eu acredito que seja impossível conter a indústria ou qualquer outra forma de domínio masculino.
Em Pleasure conhecemos Linnéa, uma jovem sueca que se muda para Los Angeles com o objetivo de se tornar uma estrela pornô — como tantas desejaram — e que assume o nome artístico de Bella Cherry. Na agência para qual vai trabalhar, Linnéa assina documentos de consentimento, preenche formulários, fica nua diante de agentes para fotos e vai morar em um casa onde vivem outras modelos, como são chamadas. Linnéa é um pouco tímida e insegura, e não sabe de nada sobre como a indústria funciona. Na entrevista, perguntam a ela o que ela topa fazer, ao que responde que só faz solo, ou homem-mulher com penetração apenas vaginal ou mulher-mulher. Uma outra garota que está sendo entrevistada junto com ela, faz de tudo. Tudo. Grupal, anal, hardcore… tudo. O que enche os olhos do agente. Eles preferem mulheres que topam tudo. Mulheres desinibidas.
Linnéa, ou melhor, Bella Cherry, vai gravar sua primeira cena pornô. Ela precisa ser testada. Um ator, um assistente e o “diretor” estão no set. Eles são educados, falam palavras gentis, a deixam à vontade, a encorajam, lhe mostram que ali é um ambiente seguro, sensual, que ela é importante e seu bem-estar é prioridade, que ela precisa se entregar ao ramo, se divertir. É ela quem manda. Ela, numa sala com três homens. Três poderes. Três pênis. Eles lhe dizem o que é preciso para mantê-la sob seu domínio e falso empoderamento.
Mas não há empoderamento onde o dinheiro está na mão do homem. Há uma doutrinação do pensamento. Elas acreditam que fizeram uma escolha quando na verdade caíram numa armadilha. Garotas de programa, atrizes pornô e mesmo as mulheres com seus "velhos da lancha" ou “sugar daddy” acreditam que detém algum tipo de poder, que fizeram uma escolha, mas não percebem que o dinheiro que manda não é o que elas ganham em troca de seus limites, o dinheiro que manda é o dinheiro que compra seus limites, sua atenção, sua performance de famme fatale, seu interesse. O poder está no bolso de quem paga pelo sexo, pelos presentinhos, pela companhia, pela atenção. É o dinheiro do poder masculino. O poder nunca sai de suas mãos, eles só fingem tão bem quanto elas podem fingir um orgasmo e um interesse mútuo.
Bella está ali apenas para o prazer capitalista da indústria e de homens sedentos atrás de uma tela. É um mundo de ilusão, onde tudo é encenado e editado para nós fazer fantasiar que aquele cenário de prazer é um ideal, onde todo mundo está se divertindo à beça. Que é inofensivo. Que tem algo a ensinar. Que atrizes só gostam muito de sexo. Vejam seus rostos sensuais! Elas estão pedindo por isso. Ouçam seus gemidos! É puro prazer!
Passado o desconforto da vergonha e falta de experiência, depois da cena em que o ator ejacula em sua cara, Bella, ajoelhada — enquanto os caras saem de perto dela com nojo — parece estar totalmente a vontade e confortável com o fluído sexual em seu rosto, fazendo fotos e vídeos para seu Instagram.
Na volta para a “casa de modelos”, junto com o assistente que estava no set e que vem a descobrir que ele também é ator, o Bear, Bella pergunta se ele era uma estrela pornô. Ele, um homem preto, responde que não era uma estrela, mas um fetiche, e sabemos como os homens negros são tratados dessa forma ao longo da história na sociedade, e na indústria pornô não seria diferente. Homens negros, na indústria pornô, são reduzidos à um subgênero, é sexo bruto e animalesco. Bear pergunta a Bella sobre o formulário que ela preencheu sobre o que aceita ou não fazer, e diz que o sexo interracial é o sexo considerado mais difícil, muito mais do que uma dupla penetração ou um anal triplo. Que o sexo interracial é considerado na indústria o maior dos maiores fetiches e o mais extremo para garotas brancas e loiras como ela, ainda que seja só o sexo básico. Ao que ela diz ser um pouco racista.
Depois, em uma sessão de fotos, ao conhecer uma "spiegler girl" — atrizes pornô classe A —, Bella se sente intimidada e fascinada. E descobre que pra ser uma spiegler girl é preciso se submeter a tudo.
O preço disso? Os limites. Todos são ultrapassados.
Ao longo do filme Linnéa/Bella passa por diversas situações, das “glamorosas” às violentas. Três cenas em específico foram pontos de mudança na personagem:
A cena do ménage\estupro violento: Após uma festa cheia de pessoas influentes da indústria, Bella decide que quer ser uma garota spiegler. E na gravação de um filme de sexo extremo, no qual contracena com dois homens, vemos um dos lados mais horríveis da indústria. Na cena: tapas, humilhações, cuspidas na cara, puxões de cabelo raivosos. Bella está visivelmente desconfortável, mas ela quer ser uma estrela pornô.
Depois, a câmera já não foca nela. A câmera passa a ser seus olhos, suas sensações, o horror. Como se estivéssemos assistindo a tudo em flashes, sentimos mais do que vemos. O sexo é bruto. Ora a visão de Bella fica escura e cortando cenas, ora vemos os pés dos atores tentando pegar mais impulso, mais força, corpos que se colidem, sorrisos de tubarão e rostos monstruosos. Bella pede para parar e chora. Ela é consolada por esses mesmos homens e o diretor, que dizem palavras de incentivo, que dizem que ela é forte e especial.
Após o horror dessa cena, Linnéa está indo embora e alguns flashbacks do set voltam, como o diretor mudando o discurso e fazendo pressão psicológica, dizendo que ela não vai ser paga porque não aguenta fazer o filme todo, que ela está prejudicando todo mundo, que aquilo não era para qualquer uma, que ela escolheu estar ali. E aí, Bella limpa as lágrimas com a maquiagem borrada e os dois atores tiram as roupas novamente, e entendemos que ela foi até o fim. O flashback acaba e ela vomita.
Quanto ela conta tudo na agência para a qual trabalha, o agente lhe diz que ela deveria ter ligado para ele, que ela não devia ter terminado o filme e a responsabiliza, ao que ela diz que estava com medo, pois estava em uma sala, sozinha, com três homens, e que eles a estupraram durante horas.
Como eu disse, a linha entre coação e consentimento é muito, muito tênue.
Linnéa parece ter aberto os olhos, reconhecido a violência que sofreu, mas Bella quer ser uma estrela pornô.
O vídeo de dupla penetração anal interracial: Bella então rompe o contrato com a agência e entra em contato com um site pornô de sexo interracial, mas como não tem mais agente, ela se oferece para gravar um filme de graça. Com dois homens. Um dos atores é o Bear. Ela tenta fazer uma piada com a situação. A cena que ela vai gravar é uma dupla penetração anal interracial. Bear lhe diz que ela não vai achar engraçado depois que acabar. Ele diz que sente que tem algo de errado com ela. E tem. Ela quer ser uma estrela pornô ao custo de si mesma.
Ao longo do filme pensei muito na música Lucky, da Britney:
(…)
Eles falam
Não é adorável essa garota de Hollywood?
E eles dizem
Ela tem tanta sorte, ela é uma estrela
Mas ela chora, chora
Chora no seu coração solitário, pensando
Se não tem nada faltando na minha vida
Então, por que essas lágrimas caem à noite?
Perdida em uma imagem, em um sonho
Mas não há ninguém para acordá-la
E o mundo está girando
E ela continua vencendo
Mas me diga, o que vai acontecer quando isso acabar?
Antes de gravar a cena, Bella flagra Bear injetando algo no seu pênis, e ele lhe diz que era para que ficasse ereto durante toda a gravação, algo que se sabe que os atores fazem para manter a performance por longos períodos.
Bella consegue fazer a dupla penetração anal com muita dor, desconforto e esforço. E graças ao vídeo, ela consegue que um dos maiores agentes de Los Angeles cuide de sua carreira. O vídeo chegou a 700.000 mil visualizações em uma semana. Com o melhor agente, ela consegue melhores oportunidades nos sets.
O trauma, a ambição, a insensibilidade: Em um outro ponto de virada na tentativa de se tornar uma estrela, é quando Bella leva a amiga que fez na casa de modelos para contracenar com ela e outro homem, que é como se fosse o maior astro entre os homens. Só que a amiga da Bella tem um passado difícil com ele. Na casa onde vão gravar as cenas, Bella flagra esse ator assediando e machucando a amiga que diz que não vai conseguir fazer a cena, mas Bella a convence do contrário. Afinal, é uma grande oportunidade para ambas. Durante a gravação, ele manda a amiga de Bella lamber seus sapatos várias vezes, como forma de humilhação intencional, e chega a beliscá-la, ao que ela denuncia ao produtor do filme, e quando ela pede que Bella testemunhe em seu favor, pois é sua palavra contra de um astro, Bella não ajuda por medo de perder sua posição e o trabalho. Ela abre mão da amizade.
Nas cenas finais, Bella vai a um evento da indústria e consegue posar para fotos com a spiegler girl do momento, a Ava, o que a faz conseguir um filme junto com ela. Quando o diretor pede para que Ava faça sexo oral em Bella, mudando a dinâmica de poder entre as duas, já que Bella está conseguindo atrair a tenção da indústria, Ava acusa Bella de forma constrangedora de estar com corrimento, então a cena é alterada para Bella com uma cinta peniana.
Na cena, Bella força Ava a chupar o pênis de borracha até se engastar, dá tapas, cuspes na cara, puxões de cabelos, uma penetração violenta e vários xingamentos, assim como os homens fizeram com ela, e tudo sob os olhares sedentos e animados dos produtores e o olhar de horror de Ava, que já tinha passado por tudo aquilo nas mãos dos homens da indústria. Afinal, ela é uma spiegle girl. Elas aguentam tudo.
Naquele momento, Bella reproduz as violências que sofreu. Ela se torna desumanizante.
Após mais uma festa, na qual se sente solitária, dividindo o mesmo carro com Ava, ela pede desculpas, mas Ava pergunta pelo quê. A dessensibilização é o que faz uma atriz pornô suportar a indústria e se tornar uma estrela?
Linnéa/Bella pede para o carro parar e desce. O filme acaba.
Ela vai abandonar a indústria?
Ela vai se tornar a nova spiegler girl?
Ela vai se tornar uma estrela pornô?
Não importa mais.
Para mim, não há nada de empoderador nos filmes pornôs, nem mesmo naqueles produzidos por mulheres que se dizem feministas — acreditem, existem.
E onde houver vestígios de dominação masculina, estarei aqui com meus dentes afiados e rosnando.
Hoje não nomeei a newsletter com a frase que sempre coloco no título de textos que abordam a condição das mulheres, mas não deixarei de dizê-la:
Não, eu não vou sorrir, mas te mostro os meus dentes!
Obs: frase tirada da música Nightmare, da Halsey. Escutem!
◖Indicações de livros, matérias, entretenimento, newsletters ou outras coisas
duas newsletters, dois documentários, uma minissérie, uma música
◖A Clarissa Wolff, da Alcateia, e a desproporcional e perigosa relação entre garotas/mulheres mais jovens com homens mais velhos;
◖A Beatriz Veloso sobre sermos uma pessoa antes de um corpo;
◖O documentário Hot girls wanted, que aborda a difícil vida das atrizes pornôs de filmes amadores e da indústria pornô como um todo;
◖O documentário A vítima invisível: o caso de Eliza Samudio é algo que todo mundo deveria assistir. Eliza, em busca do seu sonho de se tornar uma goleira, quando se mudou para o RJ, acabou caindo da armadilha do indústria pornô, mas logo saiu. Mas caiu em uma outra armadilha. Seu corpo desumanizado de tantas formas.
◖Les Combattantes — ou Guerreiras, no Brasil — é uma minissérie franco-belga de 2022 que retrata quatro mulheres em diferentes realidades durante a Primeira Guerra Mundial e como seus destinos se cruzam. Uma fugitiva, uma prostituta, uma esposa e uma freira na França de 1914.
◖Preciso compartilhar de novo com vocês a música da Gnose, rock autoral aqui de Fortaleza, A vampira e o lobisomem. Essa é pra escutar no último volume!
◖Na edição anterior de A adulta
publiquei uma poesia minha que ganhou um prêmio aqui em Fortaleza
◖Você também me encontra aqui:
Até a próxima!
Ótimo texto, Anny! Vou assistir o filme hoje mesmo
Pleasure é um filme que muitas vezes faz a gente mudar de posição na cadeira por conta do desconforto que causa. Sweat é outro filme que explora o mesmo tema da exploração dos corpos femininos, mas em outro aspecto, o do corpo perfeito. Eles se conversam muito, inclusive.