A PIPA E A GAROTA
Passado, o começo de um adorável sonho
Cinco garotos estavam empinando pipa, as linhas envoltas em latas de óleo de cozinha e gravetos. Era o intervalo entre as aulas de Biologia e a de História, Chico e os amigos estavam no campo ao lado da quadra de futebol. Sem a camisa da farda, que tinha jogado sobre o banco de cimento, o garoto olhava para o alto, o peito nu já estava ganhando forma por sua dedicação à academia — tinha até um pôster de Arnold Schwarzenegge na porta do seu quarto para lhe motivar, e, logo abaixo dele, o do Rambo. O cabelo comprido, que era o orgulho de sua mãe, já alcançava a cintura estreita. Nunca deixava crescer além. O pai já tinha brigado várias vezes, dizia não ser cabelo de homem, mas Chico não ligava, gostava do cabelo grande, e as garotas também. Era só o que lhe importava.
— Aquela nuvem parece dois pinguins se beijando — Chico observa, achando muito hilário.
— É o Otávio e aquela menina matraca que ele gosta — Giovani fala, recebendo um tapa de Otávio na cabeça. — O que foi que eu disse?
— Olha, olha! Cuidado, beréu! Se essa pipa enroscar na minha… — Meio Pão deixa a ameaça no ar ao quase atropelar Pedro.
— Cão que ladra, não morde — o outro zomba, concentrado em sua pipa, a maior das cinco.
O vento sopra a pipa de Chico para longe das demais. Ele pula o canteiro de flores, esmagando algumas, outros alunos desviam dele para não serem atropelados, um pombo ali levanta voo no último momento, mas ele não vê a garota que, alheia ao menino de um metro e setenta, acaba recebendo um encontrão daqueles e indo parar nos braços da amiga a sua frente. Chico solta um palavrão de deixar qualquer um chocado ao ver que sua pipa ficou presa entre as folhas da goiabeira, bem no topo. A garota atropelada agora encarava o brutamontes que a atingiu e que nem ao menos lhe pediu desculpas. Ao contrário, estava se afastando e ainda xingando. Mas que desbocado!, pensa, horrorizada com tamanha falta de educação.
— Ei! Você me empurrou! — Ela tenta alcançar sua atenção, mas ele a ignora.
Chico olhava para o alto da goiabeira, um dos locais mais disputados em toda a escola, mas que ele e os amigos sempre detiveram quase todo o domínio no intervalo, e ficavam atrepados em seus galhos até o recreio terminar. Estudando uma forma de resgatar sua pipa, o suor na pele das costas brilhando, Chico estava indiferente à garota, ainda perplexa, logo atrás dele. Toda a sua atenção estava na pipa.
— Ela tá enganchada lá em cima, cara. Não tem nem chance de você conseguir alcançar. Melhor fazer outra. Ainda tenho material lá em casa — Pedro oferece, ao seu lado.
— Que droga! Se eu não tivesse tropeçado.
— E se não tivesse me atropelado também, né?!
Se dando conta da presença da menina pela primeira vez, Chico olha para trás. Um rosto em formato de coração, com maçãs salientes e sardas no nariz lhe encarava tentando parecer durona, mas Chico conhecia meninas duronas, igual a Gabriela, que se sentava no fundo da sala e lhe dava um baita medo com a maquiagem preta nos olhos, o batom também preto. Diziam que ela fazia feitiçaria e escutava músicas com mensagens subliminares que vinham direto do demo! Instintivamente, segura o crucifixo no seu colar de prata, não que fosse muito religioso, mas sua avó materna pediu para ele sempre usar, para dar proteção. Mas a garota parada com os braços cruzados, a blusa da farda impecável por dentro da saia de pregas, não dava nenhum medo. E o biquinho de quem estava injuriada que ela fazia, quase lhe dava vontade de rir à beça.
— Não vai dizer nada, tipo, “me desculpe”?
— Qual seu nome mesmo?
— Lúcia. — Sem paciência, ela não parava de bater o pé no chão sem parar.
— Foi um acidente, Lúcia. — Chico dá de ombros e volta a olhar para a pipa no alto da goiabeira. Se conseguisse alcançar aquele galho do lado esquerdo e se impulsionar para cima só um pouco, se agarrando no galho do lado direito… É, poderia dar certo.
Se afastando de Pedro e da menina, Chico prende o cabelo com um elástico que sempre carrega consigo no pulso e vai até a goiabeira, carregada de frutas, mas ainda verdes naquele agosto de 1992, subindo com pés descalços os primeiros galhos que sustentam seu peso. Ele caminha como um exímio equilibrista sobre o galho que julgou que o levaria próximo de onde a pipa estava, mas o galho não era forte suficiente, o deixando com medo de despencar lá de cima. Chateado, recua. Realmente tinha perdido sua pipa.
— Aproveita que está aí em cima e faz a fezinha de tirar umas goiabas, vai! — Meio Pão pede, pois adora comer goiaba verde com sal.
— Suba e pegue você mesmo! — Chico responde, chateado.
Na hora de descer da goiabeira, seu pé direito se firma de mal jeito no tronco e ele escorrega, caindo no chão, onde fica por um momento por causa do impacto. Seus amigos riam tão alto que chamavam a atenção de todos ali no pátio, e a garota que ainda estava por perto, se aproxima do rapaz.
— Bem feito — é tudo que Lúcia diz, satisfeita, dando uma rabiçaca ao se afastar. E se achando vingada pela lei do retorno, volta para junto das amigas que observaram tudo com divertimento.
Chico se levantou com um meio sorriso que se formou em seu rosto a contragosto. Essa garota realmente é uma fresca!, pensou, e mesmo achando que ela tinha as pernas finas, o nariz um pouco grande e cara de joelho, até que queria dar uns beijinhos nela.
Na hora da saída, Chico, com sua camisa da farda por cima dos ombros, o cabelo cacheado solto, é repreendido pela diretora que fazia questão de que todos os alunos estivessem sempre muito bem trajados com o fardamento, mas antes que o carão se prolongasse, o menino a beija na bochecha e sai correndo com os amigos. Chico era adorado por todos na escola, inclusive pela rígida diretora. As suas excelentes notas conquistavam os professores, seu jeito brincalhão e sua lealdade, o respeito dos garotos, e sua beleza não passa despercebida pela maioria das meninas. Em casa, era filho único, mimado e amado pela mãe professora universitária, e tirando o fato de não gostar do cabelo grande do menino, seu pai, um estressado gerente bancário, tinha orgulho do filho. Aos vizinhos do condomínio, onde quase todos eram idosos, Chico fazia questão de ajudar com as compras do mercado, trocar uma lâmpada e jogar uma partida de dominó às quintas-feiras.
O garoto caminhava confiante, os amigos, os únicos que zoavam com sua cara e sua fama de Don Juan, corriam em direção à Praça dos Leões onde ficariam um tempinho antes de irem pra casa. Na escadaria que levava até a praça, no alto, ele viu Lúcia e as amigas passando de mão em mão uma edição da Capricho, quase todas as meninas que conhecia liam essa revista e não entendia o porquê. Só para implicar, toma a revista quando ela vai parar nas mãos de Lúcia, que tenta pegá-la de volta, dando pulinhos para tentar alcançá-la. Ele tentava ler o que tinha escrito na capa, era algo sobre como beijar bem, e pela segunda vez naquele dia, teve vontade de rir bastante. Lúcia, com seu rosto parecendo uma pimenta-malagueta, consegue pegar a revista de volta, a escondendo atrás de si.
— Você não tem mais o que fazer não, garoto?!
— Não. E pra sua sorte, sei beijar muito bem. Pelo menos é o que dizem. — Chico, com todo direito a vaidade que tinha, se curva um pouco para ficar na altura da menina. — Você é sempre tão rabugenta assim?
— E você é sempre tão intrometido assim? — E, dando um passo para trás, ela quase passa direto pelo degrau onde estava, mas Chico a segura bem a tempo.
— Olha só, salvei a sua vida, mesmo você sendo tão antipática.
— Na verdade, a culpa de eu quase ter caído é sua!
— Como pode ser culpa minha? Ah, já sei! É a minha presença que deixa tu nervosa, não é?
— Eu não dou a mínima pra você. Por mim, pode sumir da face da Terra.
— Chico! — O menino olha para Giovani, que estava sentado no corrimão no alto da escadaria, como os outros amigos estavam.
— A gente se vê amanhã — diz para Lúcia e se afasta sem esperar resposta, mas essa veio mesmo assim.
— A gente não se vê coisa nenhuma! — Lúcia diz em alto e bom tom. Mas Chico nem ligou e, se juntando aos amigos, aproveitou a mais bela tranquilidade de seu mundo particular imperturbável.
— Quem é a gatinha? — Giovani, curioso, coloca o braço por cima do ombro do amigo, o que só era possível quando estavam sentados.
— Ninguém importante. Vai jantar lá em casa?
— E lá sou homem de recusar comida de graça!
— Que mané homem. Tem nem tamanho de gente ainda — Pedro fala, dando uma chulipada com os dedos indicador e médio juntos na orelha de Giovani.
— Ai! Sai daqui orelha de abano.
— Respeita os mais velhos, sibitinho. — Otávio, com suas espinhas sempre inflamadas se mete também na conversa.
Chico ri dos amigos, sabendo que todos se adoram muito. Procura por Meio Pão, o achando ali perto, sentado no banco de madeira, copiando como um louco as anotações do caderno da irmã super inteligente de Otávio, que mesmo gostando de fingir que nenhum deles existia, tinha de esperar o irmão mais velho pra irem embora.
— Vocês viram na televisão aquela galera com as caras pintadas, querendo tirar o presidente do poder? — Otávio pergunta e recebe uma careta de Pedro.
— O que é, vai ser político agora?
— Isso é uma parada importante que tá acontecendo, idiota. Devia parar de ser alienado.
— Eu detesto política, não serve de nada — Pedro responde, parecendo mais preocupado com as gêmeas Daniela e Dalila que subiam a escadaria naquele momento. Não que tivesse qualquer interesse pelas duas, mas olhou pros lados para ver se o irmão delas, Maurício, estava por perto. Era do menino super protetor com as irmãs de quem ele gostava. Secretamente. Embora achasse que Chico suspeitava de alguma coisa, pois uma vez o flagrou olhando para Maurício sem conseguir desviar os olhos, mas nada comentou, nenhuma piadinha sequer. Pensou que ele fosse contar para os outros, mas não, e já se passaram várias semanas. Resolveu deixar o assunto quieto. Mas acreditava que, como fãs de Cazuza e Renato Russo, talvez o amigo nem se importasse se dissesse a verdade. Mas guardava só pra si por via das dúvidas.
— As garotas não gostam de caras alienados — Otávio o provoca. Não muito comum para sua idade, o rapaz lia o Diário do Nordeste e O Povo, jornais que o pai comprava todos os dias, e também assistia aos noticiários, pois gostava de estar sempre bem informado, e queria cursar jornalismo na universidade.
— Cara, não é que eu não me importe, mas gritar não vai resolver nada, você vai ver. Esses homens que estão no poder são quem mandam.
— Eu acho importante se manifestar, exigir direitos e mudanças. Como é que as coisas vão mudar? — Chico observa, tendo a atenção de Pedro, que o respeitava muito, mas o menino de dentes entramelados não se convence.
— Não sei não. A tal da ditadura passou um tempão aí, os polícia fazendo tudo que desse na telha, e o que foi que fizeram pra impedir? É como minha vozinha sempre diz: manda quem pode e obedece quem tem juízo.
— Olha as ideias! — Giovani comenta mesmo sem entender muito sobre o que os amigos falavam. Não entendia dessa coisa de política, de protesto, de ditadura. Só queria poder ter muito dinheiro pra ir ao mercado e comprar um monte de Danone, recheados de todos os sabores, carne e lotar a geladeira e o armário de casa que sempre estavam vazios.
Chico, vendo Lúcia e as amigas saindo dali, indo na direção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, também perdeu o interesse no assunto de política. Que dia atípico e maluco teve, nunca nem tinha dado fé da existência da menina até aquela dia. E em meio as risadas dos amigos que não discutiam mais, mais zoavam com quem passava, pensou que aquela era sua tarde preferida de todas em muito tempo. E pensou no que poderia fazer para falar com Lúcia no dia seguinte. Talvez provocá-la, chamá-la de feia. É, faria isso! E com a ideia, sabia que poderia levar a maior surra da sua vida, porque a menina tinha um gênio de cão! Mas, forçando o pensamento mais um pouco, se deu conta de que achava bem bonita.
E já caminhando a uma distância segura dos pensamentos e olhos de Chico, Lúcia não conseguia mais se concentrar no que as amigas diziam, só pensava no quanto não queria mais cruzar com o garoto idiota, de jeito nenhum!, pois tinha medo de sentir outra vez a vontade estúpida de beijá-lo como sentiu na escadaria da praça.
No último capítulo: Chico, de volta ao presente, lembra dos desentendimentos que levaram ao fim de seu namoro com Lúcia.
Obs: capítulo três em 14/01/25.
◖Na edição anterior de A adulta
leia o capítulo 1 de Amor Comum
◖Você também me encontra aqui:
Até a próxima!
o amor brota de onde menos se espera.