As dificuldades em atravessar uma cidade que muitas vezes não nos atravessa
Fortaleza e o transporte público: o ônibus enquanto engrenagem humana
◖O ônibus
Essa engrenagem humana
Chego na praça do meu bairro às 6h15 mais ou menos, e, de longe, observo a fila que se forma na parada de ônibus. Aos estudantes e suas fardas formadoras de futuro se juntam os trabalhadores e suas fardas formadoras de rotina. Trabalhadores de shopping, de lojas do centro da cidade, de escritórios, de residências e de tantos outros lugares. O ônibus vem, e a engrenagem humana começa a funcionar.
De segunda à sexta, passo cerca de três horas no ônibus diariamente (entre ida e volta do trabalho). Para ir à praia, cinema, shopping, para outras atividades de lazer e encontrar amigos, também utilizo o transporte público. Quase nunca uso Uber. É sempre caro, moro distante da vida cultural da cidade que acontece no centro e dos grandes polos de lazer pela cidade. O ônibus é minha opção prioritária, mesmo que seja onze da noite. E mesmo correndo um risco de assalto (o que nunca aconteceu comigo dentro do transporte público), me sinto mais segura que no carro de um desconhecido.
Uma das cenas mais recorrentes no ônibus é a solidariedade. É o ceder uma passagem do passcard para uma pessoa que não tem dinheiro para pagar, é comprar aquele bombom, chilito, jujuba, suporte pra celular, palavras cruzadas, fones de ouvido de 3 reais, tempero, biscoitos e uns deliciosos bombons de gengibre com mel e limão do ambulante. É doar uma banana, uma pacote de bolacha Cream Cracker, o biscoito recheado, uma maçã ou o Clube Social para alguém que pede comida, ou dar aqueles cinco centavos para ajudar a pagar sua conta de luz, comprar a fralda e o leite dos filhos ou pagar o aluguel. É o ceder o lugar para alguém mais velho, é segurar a bolsa ou mochila de alguém que viaja em pé.
O ônibus também é o lugar da leitura de um livro ou daquele artigo pra faculdade, mesmo com o ônibus chacoalhando e passando por lombadas que nos jogam lá no teto! É ouvir uma música, com os fones de ouvido impedindo os burburinhos em volta ou ter que escutar o que quer que toque no aparelho de rádio do ônibus, sintonizado nas rádios Jangadeiro, Cidade, Jovem Pan, 99 ou 89 FM. Às vezes, o motorista se empolga, deixando a música no último volume e não escuta o sinal, fazendo sempre alguém dar aquele grito: "vai descer, motorista!". Adoro quando toca Legião Urbana ou outros grandes sucessos das décadas de 80 e 90 e suas letras e melodias nostálgicas e inesquecíveis. É também no ônibus que podemos aproveitar para assistir mais um episódio daquela série, do nosso dorama favorito ou ver incontáveis reels e vídeos no Tik Tok. É também o lugar de mais alguns minutos de sono por ter acordado quatro ou cinco da manhã.
O ônibus ainda serve muitas vezes como um confessionário ou sessão de terapia. É contar pro colega da cadeira ao lado os problemas de casa e do trabalho, onde acabamos descobrindo sobre os maridos infiéis, os filhos que não gostam de estudar, a amiga falsa, os parentes que pedem dinheiro emprestado e não devolvem, o desejo de que o fulano "pague a língua", o chefe que não valoriza seu trabalho, o cansaço da jornada entre trabalho e faculdade, as delícias de uma nova paixão, os planos de uma viagem, o salário pequeno e as contas gigantescas, os traumas e brigas familiares, as opiniões políticas ferrenhas e as polêmicas das celebridades.
O ônibus, ainda que eu não goste, é também púlpito de pregadores da bíblia, com seus testemunhos e orações. É também o lugar de artistas independentes, que mostram suas canções, piadas, malabarismos e declamações de poesias. É a oratória e a lábia dos fortalezenses.
O ônibus é o lugar dos adolescentes e suas urgências escolares, sentimentais e as idas à praia em verdadeiros bandos nos fins de semana! O ônibus é lugar dos idosos e suas fragilidades, que se acentuam na hora de subir aqueles degraus altíssimos. É o lugar das crianças que acham uma grande aventura sentar nas cadeiras altas, ainda mais na janela!
Mas o ônibus é, principalmente, o lugar do trabalhador. É o horário de pico e a lotação, o empurra-empurra, o se segurar onde der. É trânsito interminável e o ócio desperdiçado.
No ônibus, nos misturamos.
É toda a gente.
O ônibus tem o odor de gente.
O ônibus é odorizado com suor, perfumes, gases, o cheiro da batatinha frita, da pipoca e do milho cozido.
É o cheiro de gente viva.
É a catinga também dessa mesma gente.
É a gente pobre.
É a gente trabalhadora.
É a gente coletiva que procura uma saída para a individualidade observando pela janela os automóveis e motos que passam.
O ônibus é a engrenagem humana a todo vapor atravessando a cidade.
◖O ônibus enquanto direito à cultura, o lazer e o ir e vir
Atravessando uma cidade que muitas vezes não nos atravessa
Um dos lugares que mais gosto de frequentar em Fortaleza é o Cineteatro São Luiz, um cinema de rua e histórico que fica localizado na Praça do Ferreira, considerada o "coração de Fortaleza" (e volto em outra newsletter para falar dela), no centro da cidade. Mas o centro não é um dos lugares mais acessíveis. Na praça, por exemplo, não passa ônibus. As ruas são estreitas demais. Veja: há várias linhas de ônibus para o centro, mas não para dentro do centro. Para chegar na praça, preciso descer há vários quarteirões de distância, passar pelos becos e ruas onde fica o comércio (fechado a noite). E como a maior parte da programação do cinema, do Teatro José de Alencar e da nossa Estação das Artes, por exemplo, acontecem à noite, temos que atravessar vários quarteirões desertos e de iluminação fraca.
Eu, enquanto mulher, tenho pavor do centro à noite. Não ando sozinha por ali. E na dependência do transporte público, deixo de ir em muitos eventos que gostaria de participar.
Fortaleza é a quarta maior cidade do país, com quase 3 milhões de habitantes, e a mobilidade urbana continua sendo um dos pontos mais negligenciados, ainda que tenha melhorado muito. Nós, que moramos distantes dos bairros mais centrais e dos grandes polos de lazer e cultura de Fortaleza, precisamos de todo um planejamento de ida e volta. É sair de casa horas antes para chegar a tempo e voltar dos lugares mais cedo para não ficar perigoso e não correr o risco de perder o horário do ônibus, por vezes tendo que pegar mais de um. Aos domingos, são pouquíssimas linhas funcionando, no único dia em que o preço da passagem é também mais acessível, indo de 4,50 para 3,90. Não é grande coisa, mas é alguma coisa. É mais barato que o Uber.
Andar de ônibus em Fortaleza é atravessar uma cidade que muitas vezes não nos atravessa. Andar de ônibus em Fortaleza é muitas vezes um constante descaminho.
E claro que não podemos falar de transporte público sem pensar também na insegurança por conta dos assaltos. Os pontos de ônibus e o próprio coletivo é uns dos lugares mais afetados pela criminalidade na cidade. Os únicos três assaltos que sofri na vida foram nas paradas de ônibus. E não dá para falar de vulnerabilidade e insegurança sem fazer um recorte de gênero, já que é no ônibus onde as mulheres também mais sofrem assédios e importunações sexuais. Foi no ônibus que me dei conta do meu primeiro assédio, ainda uma menina, e um homem adulto pegou na minha bunda enquanto estava parado atrás de mim. Foi onde também vi várias outras meninas e mulheres passando pelo mesmo, pois os assediadores se aproveitam da lotação para se esfregarem em nós.
Em 2018 foi criada a plataforma Nina, parceria da prefeitura de Fortaleza com a Etufor (empresa de ônibus), e na qual podemos fazer denuncia de assédio sexual no transporte público. Em 2023, foram mais de 400 casos denunciados.
“Entendemos, no entanto, que é necessário massificar ainda mais a comunicação para que as pessoas possam conhecer e utilizar ainda mais a Nina como uma ferramenta de levantamento de evidências, sobretudo para que se possa, por meio do boletim de ocorrência e da busca pelas imagens, realmente deflagrar os processos investigatórios e chegar até o importunador”, analisa.
Ainda conforme o levantamento realizado pela gestão da plataforma, a maior incidência de assédio ocorreu dentro dos ônibus, com 76% dos casos relatados, 7% nos terminais e 6% nas paradas de ônibus.
Claro que nem tudo são espinhos. Uma das melhores medidas de mobilidade urbana em Fortaleza, sem dúvidas, foi a integração, que, dentro de um período de duas horas, pode-se utilizar uma única passagem para pegar quantos ônibus for possível dentro desse prazo com o Bilhete Único. Hoje, temos ar-condicionado nos ônibus, e para quem mora em cidades quentes sabe o quanto é necessário. No meu bairro, temos linhas de ônibus que passam por dois terminais, BR116 (a principal do país e que tem inicio aqui em Fortaleza) e centro da cidade. Um privilégio.
Para pensar também:
É forçoso reconhecer a necessidade de se implementar políticas destinadas a melhorar a igualdade de gênero, como favorecer caminhadas, ciclismo e transporte público coletivo e seguro. Em outras palavras, privilegiar o design centrado nas pessoas e a inclusão de gênero no desenho de mobilidade urbana. (nessa matéria da Forbes)
O transporte público ainda é o maior meio de locomoção da maioria das pessoas, da força de trabalho, do fazer a cidadania.
É com o transporte público que ocupamos a cidade.
◖Indicações de livros, matérias, entretenimento, newsletters ou outras coisas bem legais
dois mangás, uma newsletter e uma música
◖Esses dias, pesquisando alguns livros, fui parar nessa resenha sobre o mangá Helter Skelter, no qual a personagem principal é uma mulher em uma busca constante e cruel para se adequar aos padrões de beleza, com consequências assustadoras. Quero muito comprar! Ainda mais por esse trecho compartilhado na resenha: “As únicas partes originais nela são os ossos, os olhos, as unhas, os cabelos, as orelhas e a vagina. O resto é tudo artificial.” Uma frase brutal.
◖Falando em mangá, assisti esses dias o belíssimo Sussurros do Coração (disponível na Netflix), e é uma coisa preciosa! Fiz minhas considerações no meu Instagram.
◖Quem você convida pra sua casa? Essa newsletter da Liliane Prata está maravilhosa.
◖A música Creep na versão do grupo musical belga Scala & Kolacny Brothers e sua melodia melancólica.
◖Você também me encontra aqui:
Até a próxima!
Adorei seu texto, parabéns. Louco pensar que tudo isso também ocorre do outro lado do Brasil onde moro, em Joinville-SC (apesar de ser uma cidade bem menor em número de habitantes).