#1 - Não, eu não vou sorrir, mas te mostro meus dentes
Breves notas sobre feminismo, ditadura da beleza, a violência masculina, o BBB e uma poesia autoral
◖Eva, eu e todas nós
A religião é parte fundamental da violência masculina contra as mulheres
Ainda menina, Eva me foi apresentada através da Bíblia. Ela, que pode ter sido a primeira mulher do mundo — segundo o livro — foi feita a partir da costela de Adão. Tal fato me soou absurdo biologicamente, e quanto entrei na igreja (evangélica), romantizado: Ela foi feita da costela do homem para ser protegida e amada por ele, disseram.
Ah, o fantástico mundo dos homens e suas narrativas!
Eva, então, foi colada nesse lugar em que sua vida foi cercada pelo masculino: o homem, ao qual ela deveria ser submissa; ao Deus, que os criou, e depois veio o Diabo, que, disfarçado no corpo de uma serpente — segundo algumas perspectivas — a enganou e a fez comer do fruto proibido, o conhecimento. E não apenas isso, a fez levar o homem a pecar. Aquele bobalhão do Adão.
Maldita: nos tornamos todas.
Eva pecadora. [a mulher]
Eva culpada. [a mulher]
Eva que enganou o homem. [a mulher]
Eva que desobedeceu seu criador. [a mulher]
Eva suja. [a mulher]
Eva desobediente. [a mulher]
Eva que não sabe aceitar ordens. [a mulher]
Eva que acreditou na serpente. [a mulher]
Na newsletter Todas as mães são pecadoras, edição da minha newsletter para o dia das mães do ano passado, escrevi:
Crescemos com a ideia de Maria, mãe de Jesus — bendita é sua voz entre as mulheres, não é? — como o maior e imaculado exemplo de maternidade. Tal é o fascínio sobre sua figura, que foi elevada ao posto de intercessora entre seu filho e os devotos da fé católica.
(...)
Tão diferente de Maria, temos Eva, a primeira mãe na Terra (segundo a Bíblia) — mas sem as glorias da outra —, que foi sentenciada como pecadora e condenada a parir filhos com dor.
Para a mulher, Deus disse:
— Vou aumentar o seu sofrimento na gravidez, e com muita dor você dará à luz filhos. Apesar disso, você terá desejo de estar com o seu marido, e ele a dominará.
Eva foi primeiramente dominada por esse Deus descrito na Bíblia que não admitia falhas em sua criação, e que depois a sentenciou a ser subjugada por Adão, pelo homem — e como bônus, todas nós fomos subjugadas ao patriarcado. Nossos corpos e maternidade, quando não recebem os floreios (para poucas sortudas), são estraçalhados pela sociedade, pela religião e pelo Estado (cujas regras, os homens ditam), que querem os direitos sobre nossos corpos, úteros e almas.
Nossas vidas.
Eva e Maria são os maiores nomes femininos na Bíblia. A pecadora e a imaculada. E ainda somos divididas assim pelo homem, ainda temos nosso valor determinado por essas duas personagens históricas. Um peso gigantesco!
Mas gosto dessa outra narrativa sobre Eva, que li no livro Homo Deus, de Yuval Harari:
Na maioria das línguas semitas "Eva" significa "serpente" ou mesmo "serpente fêmea". O nome da nossa mãe bíblica ancestral oculta um mito animista arcaico, segundo o qual as serpentes não são nossas inimigas, e sim nossas antepassadas.
E se, o tempo todo, a Serpente quis nos libertar?
◖Juventude, beleza e status de relacionamento
Os Rodriguinhos: do reality show à vida não televisionada
Juventude, beleza e status de relacionamento. A balança sempre vai pesar sobre o quão jovens, belas e desejáveis somos, e o BBB está refletindo muito bem a realidade da vida não televisionada. Em uma conversa, Rodriguinho desdenha do corpo de Yasmin Brunet (loira, alta, magra, de olhos claros), diz que ela já não é tão bonita assim, que ela, uma mulher de apenas 35 anos, já é velha.
Engraçado como o homem envelhece e é sempre chamado de “garotão”, de menino, apenas um travesso. E esses mesmos homens decidiram que aos trinta, a mulher perdeu a “validade”. É um mundo nojento.
Sendo uma mulher de 32 anos, fico indignada, com ódio, com medo dessa visão violenta e social tão perpetuada ao longo dos tempos entre os machos.
E dentro dessa questão de já sermos “velhas aos trinta”, entra a questão de tantas mulheres em busca de procedimentos estéticos absurdos para parecem mais jovens e atraentes, e entra a questão do status de relacionamento, porque mulher solteira na casa dos trinta é porque ninguém quis, ficou pra trás, é uma encalhada, solteirona. Mas os homens continuam um garotão, um menino, um travesso.
Outros dois participantes, Maycon e Lucas, disseram ter dificuldade em conversa com Yasmin porque ela é bonita e sensual demais, e essas pobres vítimas da “mulher imoral” estão com dificuldade de controlar seu “extinto” de macho.
E assim como acontece no reality, acontece em nossas vidas longe das câmeras. O machismo diário que vem não só de desconhecidos, mas também de pessoas que queridas que fazem parte de nossa vida.
Acredito que estamos (...) vivendo o estado de barbárie semicivilizada promovida por opiniões masculinas que autorizam os homens a cometerem todo tipo de atrocidade recreativa contra a mente e o corpo-fêmea. Tais opiniões de subjugo sobre nossos corpos, intelecto, sexualidade e autonomia são tamanhas que a violência masculina foi internalizada por nós mesmas nos mais diversos aspectos de nossa vida pessoal.
Trecho dessa newsletter da Layla de Guadalupe.
◖Poesia autoral
A espécie homem-odiador
Escrevi o poema abaixo há alguns anos:
"É menina!".
Somos declaradas ao nascer.
"Foi assassinada!".
Somos declaradas a não viver.
À espreita, em nosso caminho,
pode surgir o maior terror:
nosso rosto estampado no jornal;
nosso sangue na cama, no piso, na rua, no matagal.
Somos a caça da espécie homem-odiador.
Que terrível é cruzar seu caminho!
Violentamente eles nos ameaçam com sua paixão furiosa,
suas bocas salivam sêmen.
Violentamente eles nos batem.
Violentamente eles nos estupram.
Violentamente eles nos matam.
Nossa carne-destino entre seus dentes, na boca nunca saciada.
Algumas vezes, a espécie homem-odiador fará barulho para ser notado:
"Se não for minha, não será de ninguém! Um dia eu te mato!".
Outras vezes, o homem-odiador vai chegar calado:
"Nunca pensei que ele pudesse fazer isso. Ele era tão amável!".
A desejo do homem-odiador é vermelho-sangue.
É um punho cerrado.
É um pênis ereto, por sua maldade estimulado.
Suas mãos são facas,
são balas,
pedras,
paus,
enxadas,
nos empurram,
nos quebram,
nos enterram,
nos afogam,
nos incendeiam,
nos sufocam.
"É menina!".
Somos declaradas ao nascer.
"Foi assassinada!".
Somos declaradas a não viver.
Em 2023, resolvi parar de seguir toda e qualquer página de notícias, não conseguia mais ler as matérias diárias de violência contra a mulher. Tantas mortes, tantas agressões, tantos estupros, tanto sangue em toda parte. Eu estava exausta da barbárie masculina. Mas agora o meu ódio voltou. É preciso que tenhamos ódio. É preciso que tenhamos RAIVA.
Quero trazer mais edições falando sobre meus estudos sobre feminismo e essas pautas do dia a dia. Então deixo essa news como a parte 1.
E o título desta newsletter (que será o título das edições que vier com essa temática) é um trecho da música Nightmare, da Halsey:
“Não, eu não vou sorrir, mas te mostro meus dentes”.
É preciso que mostremos nossos dentes!
◖Você também me encontra aqui:
Até a próxima!