Não, eu não vou sorrir, mas te mostro os meus dentes - parte 4
A ditadura sangrenta dos padrões de beleza, o filme A substância e o mangá Helter Skelter
Essa semana li a notícia de uma mulher — mais uma — que morreu após se submeter a SEIS cirurgias plásticas aqui no Ceará. Se SUBMETER: é essa a palavra certa? Em que momento ela acreditou que sua imagem refletida no espelho — refletida em uma ditadura de padrão de beleza e juventude que nos impõe um prazo de validade cada vez menor e cada vez mais cedo — não era o bastante?
A minha doutrinação começou cedo.
Uma parte da minha adolescência foi uma época de ódio a mim mesma. Eu tive escoliose entre os 12 e os 14 anos. Eu me sentia horrenda — mas foi possível reverter sem o uso pavoroso do colete que eu tanto temia. Ajeitei a coluna com natação, mas o meu nariz não era pequenininho e arrebitado como das minhas amigas. ÓDIO! Minhas orelhas, telefônicas. ÓDIO! Meu corpo magro, sem muita forma. ÓDIO! Seios pequenos mas que já chamavam atenção de homens adultos e predatórios. ÓDIO!
Minha vontade de ser adorável e sexy aumentavam junto com meu ódio. Uma garota estúpida.
Quem eu deveria ser? Na parede do quarto, várias páginas de revistas coladas com fotos de modelos super magras e deslumbrantes.
Dedo na garganta.
No filme A substância, vemos cenas de horror, tripas, sangue, vísceras, a feiura da extrema violência a qual uma mulher se submete — outra vez essa palavra — pela busca da juventude e beleza. E também a violência que atinge o corpo de uma mulher que envelhece, que é tão facilmente desprezado e descartado, alvo de piadas e rispidez, enquanto que o corpo jovem é exaltado, objetificado, desejado e enaltecido. Eu assisti todo o filme com uma angustia sufocante.
Na trama, Elisabeth, uma atriz outrora bem sucedida, com uma estrela da fama, se vê aos 50 anos apresentando um programa de exercícios aeróbicos com um colam justo. É seu aniversário, e junto com ele vem a notícia de sua demissão. Querem alguém mais jovem e atraente. A audiência e os produtores exigem essa troca. Esse descarte. Questionando sua imagem e a carreira em declínio, ela recebe um convite para ter a “melhor versão de si mesma”. Seguindo instruções suspeitas, ela pega sua caixa misteriosa em um determinado local. Dentro da caixa, uma substância e vários acessórios de aplicação para dias específicos. Após injetar o líquido em si, seu corpo passa por um processo imediato e bizarro, até que um enorme corte em suas costas se forma e, de dentro, sai a sua nova versão, mais jovem e linda. É um parto pelas costas de uma pessoa adulta. Um horror.
Não há beleza sem dor, não é?
A versão jovem de Elisabeth se chama Sue, que durante sete dias assume a vida de Elisabeth, inclusive consegue o mesmo emprego e conquista a todos. Elisabeth fica em algo como um coma durante esses sete dias, até que Sue assume esse lugar e Elisabeth volta a ser funcional outra vez, só que sem as glorias de sua versão mais jovem.
Enquanto Elisabeth se afunda cada vez mais em um mundo deprimido e escondido, Sue vive em um mundo glamoroso e cor de rosa.
Nada visto em A Substância, da diretora francesa Coralie Fargeat, que também dirigiu Vingança, de 2017, chega perto do horror que a ditadura da beleza e da juventude faz com nossas emoções diariamente, nos tirando pedacinhos muitas vezes imperceptíveis, mas com potencial aniquilador. Com potencial de nos desumanizar até não restar nada.
Eu fui doutrinada cedo, já disse. Roupas curtíssimas para mostrar minha barriga faminta e magérrima. Maquiagem nos olhos perdidos para parecer sensual. Palavras-monstros em meus lábios com gloss de morango e beijáveis.
Toda minha adolescência foi um ritual de me fazer desaparecer até me tornar quem eles queriam. Eles: os que operam a engrenagem sangrenta dos padrões de beleza.
A ditadura da beleza se esbalda todos os dias em nosso sangue, lágrimas e vômito.
Há alguns vídeos no Instagram e TikTok de influencers falando que não devemos desejar seus corpos, e enumeram os vários procedimentos que fizeram para parecerem um sonho alcançável. Infelizmente, elas não me soam como libertadoras, mas como vítimas e armas de destruição da alto estima de mulheres que querem ser como elas. Elas serviram bem ao propósito. O mal já se alastrou. Pouco pode ser desfeito.
Em Helter Skelter, um mangá (1995) e filme (2012), Lilico é uma modelo famosa, que estampa diversas revistas, outdoors e comerciais. Ela é adorada, objetificada e tem sua imagem explorada ao máximo. Para se manter no topo, Lilico, passa por diversas cirurgias plásticas em uma clínica investigada por utilizar métodos desumanos para proporcionar a juventude e beleza que seus clientes buscam.
Lilico descobre que a agência tem uma nova aposta, uma garota muito mais jovem — 14 anos — e bonita “naturalmente” — mais seria uma futura Lilico? —, da qual passa sentir uma inveja mortal, a fazendo tomar decisões que a leva ao declínio absoluto. Helter Skelter é como os tobogãs eram chamados na Inglaterra, em formato de espiral. Quando os procedimentos que fez começam a fazer um efeito reverso, deteriorando o seu corpo e mente, o título simboliza essa descida desordenada na vida de Lilico.
Em um trecho do mangá:
“As únicas partes originais nela são os ossos, os olhos, as unhas, os cabelos, as orelhas e a vagina. O resto é tudo artificial.”
Somos o tempo inteiro bombardeadas pela hiper valorização do corpo perfeito, com “tudo no lugar”. Achamos o máximo quando dizemos nossa idade e o outro diz que aparentamos ser mais jovens. Juventude, juventude, JUVENTUDE! Beleza, beleza, BELEZA! Nos vedem o belo constantemente: tome novos lábios, uma bunda mais firme, seios maiores, barriga tanquinho, maças do rosto adoráveis, um braço novo, uma panturrilha atraente.
Vulvas e vaginas? Temos também!
Tudo pode ser melhorado, remodelado, arrancado, esticado e diminuído.
Nos querem sempre MAIS magras, com lábios MAIS carnudos, cabelos e cílios MAIS compridos, peitos e bunda MAIS firmes, nariz MAIS assimétrico. Nos querem fazer parecer MAIS jovens. MAIS férteis.
MAIS ali, MENOS aqui.
NADA de você!
Essa análise certeira sobre Helter Skelter e como a venda do padrão de beleza é operada:
“Beleza processada” (termo usado a certa altura do filme) e carne processada. O filme faz essa analogia tentadora – o sabor artificialmente condimentado da carne industrializada e a beleza hiper-realizada cirurgicamente da protagonista.
Estão nos enlouquecendo!
Nos aniquilando até não sobrar nada além de desilusão, e, em casos extremos, mortas em busca de um corpo perfeito. Porque nunca vão nos deixar ganhar. E, ainda que escapemos, as sequelas permanecerão. Muitas de nós não vão sequer conseguir chegar perto da própria mente e se libertar. A doutrinação vem desde o primeiro furo na orelha quando ainda somos bebês. Brinquinhos para simbolizar nossa feminilidade, para sermos uma gracinha desde o início de nossas vidas. Para sermos descartas ao menor sinal de uma ruga.
Tenho estudado, me conscientizado e buscado estar perto de mulheres que reforcem essa rede de proteção e cuidado entre nós, mas ainda sinto tanto medo do processo de envelhecimento. Ainda sinto tanto medo do que vou encontrar no espelho amanhã, daqui a cinco anos, em um piscar de olhos.
Lana Del Rey pergunta em Young and Beautiful:
“Você ainda vai me amar quando eu não for mais jovem e bonita?”
Se hoje sou uma mulher de ainda 32 anos, mas que por muitas “piadas” na internet já considerada de “meia idade” e velha, o que será de mim quando eu realmente for uma mulher na meia idade? As rugas me trarão algum senso de pertencimento ou me transformarão em um monstro irreconhecível? Até lá, o quanto vou ter que me “empoderar”, rebater, argumentar, me convencer? Até lá, quanto ainda vou ter que me defender — e a todas nós — por nosso direito de existir, envelhecer e de aceitar quem somos se muitas vezes me vejo escorregando no abismo da comparação e do ódio próprio?
Quem e quando será a minha melhor versão se sou condicionada a ser minha pior inimiga em todas as fases da minha vida?
◖Indicações de livros, matérias, entretenimento, newsletters ou outras coisas
dois reels
◖Esse reels-poesia da atriz Marina Dulinsky sobre envelhecimento;
◖Esse reels da atriz Fernanda Nobre sobre o padrão de feminilidade;
◖Na edição anterior de A adulta
minha reivindicação pela eu escritora
◖Você também me encontra aqui:
Até a próxima!
Que edição necessária, Anny!
Eu tenho 40 anos agora e penso sobre isso com alguma frequência. As rugas aparecem de verdade as de expressão e as rugas da idade. E lidar com isso sem fazer nenhum procedimento (escolho assim) é um desafio.
Não faltam os que dizem “mas você já pensou em fazer uma aplicaçãozinha aqui na testa”. Principalmente, minhas amigas, mulheres que cegam diante da possibilidade de parar o tempo e manter, a todo custo, o corpo firme. Bem, meu corpo está em queda. Meus olhos, minha pele do rosto. E isso é o que deveria acontecer, se você está viva.
Que texto sensacional! Tenho a percepção que a beleza tornou-se moeda de troca antes mesmo da chegada desse século, essa geração que vem pós segunda guerra é criada para idolatrar procedimentos estéticos e assumir o risco de desejar a perfeição, tão falsa quanto a mentira do triunfo do capitalismo. Não vejo melhora com a era digital, inclusive acho que potencializou os efeitos nessa última geração (me incluo nesse balaio), e é muito triste ver todo mundo ao seu redor manifestando esse desejo de fazer procedimentos estéticos e naturalizando esse processo de odiar tanto seu próprio corpo.
Não sei se tenho estômago para assistir os filmes que recomendou, mas talvez vá encarar só pela curiosidade.