O primeiro amor e suas dores
leia o primeiro capítulo de Este adorado sonho, meu conto juvenil
❀ Na newsletter de hoje, deixo para vocês que ainda não leram Este adorado sonho, o primeiro dos três capítulos. O conto completo vocês encontram aqui . Esse conto juvenil escrevi com um carinho imenso, é minha primeira história publicada e acredito que consegui deixá-la com a minha marca.
O primeiro amor e suas desilusões em uma Fortaleza dos anos 90 é o que você vai encontrar na leitura.
Me digam o que acharam!
Até a próxima!
A TARDE MAIS TRISTE DE TODAS
Presente, seis meses depois do fim de um adorável sonho
No Centro da cidade, Chico passa por cima de um jornal já bastante pisoteado de um mês atrás, onde se lia sobre a alta da inflação, e que agora estava sujo da terra do seu All Star vermelho e dos pneus de sua bicicleta Monark verde. Do bolso de trás do seu jeans, ele retira um icekiss de cereja, no interior da embalagem está escrito “me dá um beijo”. Só podia ser piada, mas Chico soca o pacote com força no bolso junto de uma nota amassada de mil cruzeiros.
Na Praça General Tibúrcio, uma majestosa edificação neoclássica, conhecida pelos fortalezenses como Praça dos Leões por causa dos dois leões de bronze trazidos da França, Chico vê os amigos que já estavam ali o esperando, alheios a toda a história do lugar. O garoto ainda sentia sono, mesmo que tenha acordado às 11h 30 com a mãe batendo na porta do seu quarto, o mandando se arrumar pra escola. Depois de um bocejo, Chico se lembra da lição de matemática para entregar no dia seguinte, no primeiro tempo, mas logo fica indiferente. Não quer pensar nisso agora. Não quer pensar na escola, nos deveres de casa ou mesmo na louça do jantar que vai ter que lavar mais tarde. Não quer ir pra casa. Não quer entrar no seu quarto. Não queria nem mesmo ter pensamentos ou coração. Queria ser um homem de lata. Sem cérebro também seria uma boa.
Chico coça o rosto, a unha roída acerta uma espinha teimosa. Sente dor, mas não há resmungos. Quando alcança o topo da escadaria da praça, depois de ter passado por entre os vários estudantes ali amontoados, o leão de bronze o recebe como em todos os dias, quando se junta ali com os outros alunos após o final da última aula, fardas brancas com mangas vermelhas por todos os lados. O leão sempre mudo talvez não reconheça o menino, que no dia anterior raspou o longo cabelo preto e agora o deixou ao estilo militar. Chico também não está com sua farda, tinha trocado no banheiro da escola por sua blusa da banda Legião Urbana e, por cima, colocado uma jaqueta preta, um pouco demais para aquele fim de tarde ainda ensolarado de Fortaleza. Ele queria passar a marra de Darrel Curtis, de Vidas sem rumo, sem toda a brilhantina e o lance de gangue. Mas era com o outro irmão, Ponyboy, com quem mais se parecia, sem tanta marra. Não precisava dessas coisas. Nem sabe quantas vezes assistiu ao filme, só lembra que a primeira vez foi no Cinema São Luís, que fica só a alguns minutos dali, quando tinha quatorze anos. O cinema de rua onde tantas lembranças agora o assombravam. “É melhor não voltar mais lá”, pensa, amargo, sentindo o corpo mais pesado, o coração como uma tonelada.
Chico alcança os amigos: Pedro, Giovani, Otávio e Meio Pão, que na verdade se chama Fábio, mas desde a briga homérica que teve com um garoto de quase dois metros e desengonçado da outra turma, por causa de um pedaço de pão, nunca mais foi chamado pelo nome de batismo. Os meninos faziam uma barulheira danada, e Chico, que antes costumava estar no meio, agora só queria ficar quieto. Faltava mais uma pessoa. Faltava algo dentro de si. Sentia como se um pedaço gigantesco do seu coração tivesse sido cortado com uma faca cega, dessas de cortar sentimentos e momentos felizes; que cortam a esperança, a transformando em algo de jogar fora. E pensar que há poucos meses vivia a mais pura felicidade, como se o mundo inteiro existisse só por sua causa. Costumava se sentir como em um sonho, um adorável sonho. Mas agora, sentia-se o mais completo tolo, o mais miserável de todos os homens da face da Terra! Agora, caminhava sobre os escombros das esperanças perdidas.
— E aí, cara. — Pedro é o primeiro a cumprimentar o amigo, e se senta ao seu lado no banco de madeira.
Chico acena para Pedro e para os outros três, que tentavam se adaptar à nova personalidade do melhor amigo, que tinha mudado muito nos últimos tempos. Os garotos não falavam sobre seus sentimentos, mas sentiam muita falta do antigo Chico, sempre sorrindo, sempre brincando. Não entendiam a sua mudança, era como se o amigo tivesse sido substituído por outro, um que não queria mais participar dos campeonatos de bila na rua e que não os chamavam mais para sua casa, para as tardes de sábado em que jogavam Mortal Kombat. Chico nem mesmo queria participar das apostas de mergulho, pulando da Ponte Metálica para o mar da Praia de Iracema, como sempre faziam em domingos à toa. Tudo mudou tão rápido. A cidade inteira agora lhe parecia uma vitrine cruel de tudo que uma vez viveu e que já não era mais possível. Pelo menos não como antes. Seu coração, esse órgão de guardar vida, parecia não mais funcionar direito.
No banco, ao lado de onde estava sentado, rabiscado com corretivo por mãos esperançosas, tinha um coração desenhado com as letras K e L dentro. Os pássaros no alto das árvores devem ter visto o autor da declaração, mas nada poderiam dizer a Chico. Ele também não se importava. Quão odiosas eram as declarações de amor. Os apaixonados!
— Tá bonito com o cabelo novo, todo nos panos — Meio Pão diz para Chico, tocando na jaqueta preta como se fosse o manto sagrado de Jesus, desejando ter uma para si. Quem sabe tivesse a sorte de ter várias garotas a sua procura como ficavam atrás do amigo. Só queria poder beijar ao menos uma, não era ganancioso.
— Guardei pra você. — Giovani, o mais novo dos cinco amigos, entrega a Chico meio pacote de recheado de chocolate, seu lanche favorito da vida. O menino franzino admirava Chico, e secretamente até desejava que fossem irmãos, tanto que ficava todo orgulhoso quando diziam que se pareciam, mas era pelo menos dois palmos mais baixo que outro, a pele preta mais retinta, os ombros nem perto de serem largos. Mas, pelo menos, sabia que era mais inteligente que o amigo. Jamais cometeria a burrice de se apaixonar!
— Ei, Chico, o que deu em você? — Otávio, que bebia sozinho uma latinha de Coca-Cola, que não ofereceu aos amigos, como nunca faz com os recheados e chilitos também, mas que acabam sendo tomados a força de qualquer maneira, solta um arroto estrondoso. — Preferia o cabelo grande. De astro do rock.
Pedro começa a tocar uma guitarra imaginária, subindo em cima do banco, os pés descalços, sujos e cinzentos.
— Nas favelas, no senado, sujeira pra todo lado…
— Ele nunca seria da Legião, estava mais para aquele cara do Pia Gen?
— O que diabos é Pia Gen? — Otávio pergunta.
— É Pearl Jam, cabeçudo.
— Olha lá, acha que sabe inglês — Meio Pão tenta derrubar Pedro do banco.
Chico escuta e observa os amigos, mas não consegue fazer parte do momento. Queria rir, fazer uma piada, corresponder aos olhos ansiosos de Kátia, a menina do outro lado da árvore há alguns metros de distância, que uma vez lhe confessou seus sentimentos, tão corajosa, pois precisava ter muita coragem para se declarar para alguém, arriscando tudo, até mesmo a ter o coração despedaçado. Como queria ter sido um covarde! O garoto sabia que nunca poderia corresponder à menina de cabelos cacheados e ruivos, que beijava bem, tinha que reconhecer, e que o abraçava apertado falando de amor só há alguns meses, atrás da quadra do colégio, onde tantos outros adolescentes se encontravam para beijos ansiosos ou um romance, longe dos olhos atentos da diretora. Chico sentia até uma vontade de pedir desculpas a Kátia, desculpas por não corresponder a sua paixão, porque agora sabe o quanto é doloroso, pois ele próprio tinha sido atropelado por outros sentimentos, por outra garota. Como doía o simples pensamento sobre ela. Lúcia, seu primeiro amor.
Quando tinha sorrido pela última vez? O coração dentro do peito, quando tinha sentido a última esperança? Em que momento começou a despencar do céu aonde foi levado na velocidade de um foguete? Um foguete que o alcançava só até a altura dos ombros, que antes, tão orgulhosos, agora viviam quase curvados com o peso da tristeza.
Chico queria ser capaz de enfiar a mão no peito e arrancar o coração e continuar vivendo, mas sem a dor. Queria poder pegar todas as memórias e jogá-las fora, fazer um tratamento de eletrochoque até esquecer de tudo que viveu nos últimos meses. Tudo. E, mesmo assim, queria poder tê-la nos braços mais uma vez e cheirar seus cabelos castanhos, se sentindo o máximo, a pessoa mais feliz do mundo! Como queria poder escutar sua risada, ver os dentes da frente um pouco separados, os lábios sempre prontos para um beijo. Chico se sentia tão miserável e sem esperanças como apenas um iniciante nos assuntos do coração poderia se sentir.
Se pudesse voltar ao passado… se pudesse, o que faria? Conseguiria convencer Lúcia a permanecer no céu dos que se apaixonam e nunca mais querem se separar? Poderia ter evitado o soco no estômago quando soube que ela estava namorando outra pessoa? E ainda, poderia ter escapado do empurrão no abismo das ilusões desfeitas quando viu os dois de mãos dadas?
Era um cara do terceiro ano de outra escola, soube. Ele a viu sorrindo, sorrindo!, enquanto o idiota comprava pipoca para ela, da mesma forma que fez tantas vezes antes, quando ia deixá-la em casa, os dois dividindo os fones de ouvido do seu toca-fitas, ele tentando fazer com que ela gostasse de Cazuza, Biquini Cavadão e RPM. Como ela poderia sorrir para outro, quando seus próprios sorrisos só esticavam a pele do rosto para ela e ninguém mais?
Se pudesse voltar no tempo, poderia salvar seu coração da mais terrível dor que ainda sentia? Se fechasse os olhos, poderia lembrar com cada detalhe doloroso o momento em que tudo começou e quando nada voltaria a ser como antes, como uma pele ferida, cuja cicatriz é inalterável.
O garoto ainda sentia a linha presa à sua pipa amarela contra o céu azul e o sol quente quase o cegando. A última vez em que sentiu seu coração batendo só para si.
O começo. Tudo parecia tão longe agora.
Sinopse de Este adorado sonho
Chico, como em todas as tardes após a última aula, vai com os amigos para a praça ao lado do colégio, ponto de encontro dos estudantes. Mas aquela tarde não é igual as outras, antes tão repletas de risos, brincadeiras, certezas e quando parecia viver no mais adorável sonho de amar e ser amado. Agora, com seu coração desiludido, o garoto relembra o início e o fim de seu namoro com Lúcia, o primeiro amor.
Em meio às mudanças políticas, econômicas e sociais dos anos 90 e as do próprio amadurecimento, Chico voltará a sentir como se pudesse tocar o céu, aquele ao alcance das mãos apenas quando se é adolescente e tudo é possível?