Orelhas telefônicas à espera da doçura e dos assassinatos verbais
Lembranças da adolescência
Em um dia qualquer dos anos 2000, que sempre me surge nas lembranças como fim de tarde, vento geladinho, a despreocupação de uma mente adolescente ainda muito corajosa, ainda muito curiosa. O gosto de sorvete de morango com chocolate na casquinha, os garotos brincando de bola na praça, a caixa d'água enorme sobre nossas cabeças, os rostos conhecidos e os passarinhos em festa no alto das inúmeras árvores espalhadas pelas avenidas alfabéticas. Em um rádio cheio de interferências na banca de jornais: Raimundos cantando sobre uma garota complicada e perfeitinha, tal qual a co-protagonista do meu romance juvenil, nascendo, nascendo, nascendo. Voltando da escola, a farda como uma marca particular e distinta: estudante. Coisa inteligente. Saudades de ser a mais inteligente para a família. A que teria um ENORME futuro. Chegar em casa, cheirinho de arroz sendo cozido, alcançando todos os cômodos com passos curtos e entediados. Tive pensando em me mudar, sem te deixar pra trás tocando na TV ainda de tubo, na Globo. Banho, lavar os longos cabelos, mexer no meu Nokia, esperar ligações e SMS que hoje evito. As espinhas no rosto incomodando, o nariz que eu via imenso mesmo sem mentir, as orelhas telefônicas à espera da doçura e dos assassinatos verbais. Depois do jantar, ir para a casa da amiga e morgar juntas até às 20h. Uma pausa para o coração acelerado e do motor daquela moto maneira passando na minha memória a 100 km/h, arrastando minha teimosia no asfalto. Morte coronária prematura. Os dias se repetindo, a música, as besteirinhas, os sonhos de menina amarela descendo lentamente a solidão. Descendo, descendo, descendo. Uma adolescente comum.
◖Indicações de livros, matérias, entretenimento, newsletters ou outras coisas
o negócio da escrita
◖Sobre as ciladas com editoras pequenas - um texto de Jarid Arraes;
◖Sobre a performance das várias versões de quem somos - um texto da Gabriela Lagemann;
◖Não está na foto de criança - uma poesia por Fabio N. Biazetti.
◖Na edição anterior de A adulta
falei sobre ser nordestina
◖Você também me encontra aqui:
Até a próxima edição!
Encantada com a sua escrita, Anny <3
E essa imagem que você colocou? Que coisa mais linda!
Anny, boa tarde.
"cheirinho de arroz sendo cozido, alcançando todos os cômodos com passos curtos e entediados".
esse período é uma lindeza de se ler. toda a vez que fizer arroz, vou pensar no cheiro caminhando pela casa. essa literatura é uma benção em nosso trabalho. parabéns.