"Todas as mães são pecadoras", é uma frase que escutei ao assistir a série Tudo Bem Não Ser Normal (assistam!), e isso mexeu comigo. Na situação, o personagem Moon Gang-Tae (em uma das muitas cenas sensíveis que faz) chorava com as lembranças de como sua mãe o tratava, sempre dando mais amor e cuidado para seu irmão autista, o Moon Sang-Tae (que também tem cenas maravilhosas). Então, uma senhora muito simpática que aluga um quarto da sua casa para os dois irmãos, o consola e diz a frase título desta newsletter.
Todas as mães são pecadoras.
Crescemos com a ideia de Maria, mãe de Jesus — bendita é sua voz entre as mulheres, não é? — como o maior e imaculado exemplo de maternidade. Tal é o fascínio sobre sua figura, que foi elevada ao posto de intercessora entre seu filho e os devotos da fé católica. Segundo a Bíblia, o Espirito Santo a escolheu para ser a mãe de Jesus, que foi concebido através de milagre (sem relação sexual), e, passando por diversas aprovações, ela trouxe ao mundo o Filho de Deus.
Acho que a ideia entorno dessa “divindade materna” que cerca as mães nasceu ali, e tornou todas as mães nesse ser incorruptível, que jamais erra. Jamais falha. Aliás: que não pode falhar!, devendo ser sempre uma figura de amor incondicional, amável e zelosa com seus filhos. Que fardo pesado foi colocado sobre os ombros mais frágeis de mulheres sem tanta Graça! Porque "mãe de verdade" ama seu filho mesmo que não queira ser uma mãe (ou só uma mãe); porque "mãe de verdade" jamais diria palavras que machucam; porque "mãe de verdade" nunca abandona; porque "mãe de verdade" aguenta todas as dores da maternidade, do abandono paterno, do abandono social, enfrenta todas as precariedades da vida pela sua cria. Sem cansar! Porque “mãe de verdade” tem que ser grata pelo dom da vida... De fato, um fardo pesado demais.
Tão diferente de Maria, temos Eva, a primeira mãe na Terra (segundo a Bíblia) — mas sem as glorias da outra —, que foi sentenciada como pecadora e condenada a parir filhos com dor.
Para a mulher, Deus disse:
— Vou aumentar o seu sofrimento na gravidez, e com muita dor você dará à luz filhos. Apesar disso, você terá desejo de estar com o seu marido, e ele a dominará.
Eva foi primeiramente dominada por esse Deus descrito na Bíblia que não admitia falhas em sua criação, e que depois a sentenciou a ser subjugada por Adão, pelo homem — e como bônus, todas nós fomos subjugadas ao patriarcado. Nossos corpos e maternidade, quando não recebem os floreios (para poucas sortudas), são estraçalhados pela sociedade, pela religião e pelo Estado (cujas regras, que os homens ditam), que querem os direitos sobre nossos corpos, útero e almas. Nossas vidas.
Se Eva existiu, imagina o desespero e desalento dessa primeira mãe, abandonada à própria sorte, carregando sobre os ombros o peso da indignidade do pecado, tendo sido expulsa de casa, seu lugar seguro (o Jardim do Éden), responsabilizada por Adão por suas próprias escolhas, enganada (ou alertada?) pela serpente. A primeira mulher não teve a mesma “sorte” que a mãe de Jesus, definitivamente.
Quando pequena, com muita influência da minha avó (de criação) católica, rezar uma Ave Maria era sagrado. Porque éramos mulheres. Maria era a única que entendia nossas dores. Eu a via todos os dias ao pé da porta, rezando seu terço, se apegando a mãe de Deus para ter forças de lutar pelo seu filho (meu ex-padrasto). E assim como ela, quantas mães estão a penar a duras lágrimas e suplicas por seus filhos não tão virtuosos como Jesus?
Qual é o preço de ser uma mãe? Somos obrigadas a pagá-lo? Qual é o preço de ser uma boa mãe?
No filme A Filha Perdida (que também é livro), o diálogo abaixo quebra vários mitos sobre maternidade como pouco vi acontecer. Pois o dedo apontado em acusação da sociedade sobre as mães, diz que uma mãe jamais, JAMAIS, deveria ter a capacidade de imaginar uma vida sem os filhos ou distante deles. Pela mente santificada das mães, esse pensamento JAMAIS passaria:
—Não viu suas filhas por três anos?
—Não.
— Como se sentiu sem elas?
— Foi maravilhoso.
A última frase foi dita por Leda, a protagonista de A Filha Perdida, com lágrimas de desabafo, por conta de um período que foi atrás de suas realizações acadêmicas, em busca de si mesma — pois um filho não é a existência de uma mãe (ou tem que ser?), e digo isso como filha, pois estou no lado confortável de alguém que não tem filhos — pois um dos percalços da maternidade é ter que aguentá-la e colocá-la acima de tudo, até de si própria. Esperam que você nunca mais seja mulher; esperam que você seja apenas a mãe. Santa, como a Virgem Maria. Jamais como Eva, a pecadora.
Nos parece impensável que uma mãe seria capaz de tal coisa, de deixar seus filhos (coisa que os homens fazem o tempo todo). Cada um de nós, que somos filhos, acreditamos erroneamente que toda a história de nossas mães começou quando ela engravidou. Seus traumas e dores, seus medos e desejos, nada disso importa, pois somos o tudo delas; somos aqueles que vieram ao mundo para curá-las e dar significado e completude; para estar ao seu lado e ser o seu único amor verdadeiro. O único amor real. Se nos tiveram, é porque devem nos amar, e não interessa se foi por livre desejo, acompanhado de uma boa e gentil estrutura familiar e condições financeiras e psicológicas — ou se foi as custas de muito acumulo de tristezas, falta de amor, falta de ajuda, falta de orientação, falta de compreensão, a negligência de um mundo que não perdoa mulheres pecadoras, a pobreza, a raiva. “Se pariu, tem que cuidar e amar!”, não importam as circunstancias. Mãe não é gente, não é mulher. Mãe é santa. Mãe é uma coisa de amar. Mãe é um objeto da casa (por vezes).
Eu nunca gestei ou pari um filho (MUITO provavelmente nunca o farei), e o fardo da santidade materna através de Maria e o fardo da condenação materna através de Eva, talvez seja algo que nunca se descole da figura da mãe, do que se espera desse seu papel “sagrado”. Eu só imagino que seja muito difícil ser uma mãe, que seja muito difícil não ser mãe (para aquelas que desejam), que seja muito difícil a decisão de não ser só mãe, que seja muito difícil desejar não ser mais uma mãe, ou nunca descobrir como “ser” uma mãe. Uma boa mãe. Ser só mulher.
Todas as mães são — apenas — humanas.
Para ler:
A Filha Primitiva, de Vanessa Passos, e uma brutal representação da maternidade.
“Não tinha mais cordão umbilical, a menina não mamava mais. Era a raiva agora que passava pra ela, de mãe pra filha. Não foi o parto, não; não foi a contração, não; não foi dar o peito, não; foi a raiva que me tornou mãe.
Para ouvir:
Uma das canções líricas mais bonitas já feitas!
A versão de Franz Schubert da música Ave Maria
Para assistir:
A Filha Perdida
As férias pacatas de uma mulher mudam de rumo quando sua obsessão por uma jovem mãe hospedada nas proximidades traz à tona antigas lembranças.
Crianças exigem uma responsabilidade esmagadora.
Até a próxima!