Deixando a profundidade de lado
As relações afetivo-sexuais e a música Divina Comédia Humana, de Belchior
Enquanto cearense, sou muito suspeita para falar de Belchior, para mim, um dos maiores intelectuais e compositores deste país. Ele também merece seu lugar no Olimpo musical brasileiro, entre todos que foram elevados até o posto de deuses, como Elis Regina, Chico Buarque, Gilberto Gil, Gal Costa, Cazuza, Marisa Monte, Renato Russo e tantos, vivos ou mortos. Belchior, no entanto, não teve muito tempo para se comparar aos deuses da música brasileira. Ele queria amar e mudar as coisas, mas a luz do mundo deslumbrante dos músicos brasileiros se apagou para ele antes de sua morte em 2017. Depois de morto, foi lembrado, exaltado até, mas morreu “esquecido” e longe da sua terra, Sobral-CE. Muitos apreciadores da obra de Belchior vão te dizer que ele foi um dos artistas mais injustiçados desse Brasil.
A arte: uma espada de dois gumes.
Eu não sei falar de música em detalhes técnicos, mas sem dúvidas Divina comédia humana tem uma das melodias e letras mais profundas que já escutei de Belchior. Lançada em 1978, no álbum Todos os sentidos, a canção faz uma referência ao livro de Dante Alighieri, A Divina Comédia, e também ao livro A comédia humana, de Honoré de Balzac. Mas, longe das penúrias do Inferno, do Purgatório até chegar no Paraíso descritos por Dante, Belchior discorre sobre o inferno, o purgatório e o céu de uma outra natureza: os dos sentimentos. Tão humanos.
Belchior, enquanto artista, é divino! Um gênio! Um poeta! Ele é a profundidade cantada.
A obra dele é pautada por um tom realista, letras que cantam o ser nordestino, a introspecção, a crítica social e as questões humanas, entre elas: o amor. A tal linha entre amor-sexo, paixão-razão, junto com todos os seus protocolos sociais e afetivos, nunca foram tão bem poetizadas como em Divina comédia humana.
Logo no começo da canção, o eu-lírico diz:
Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol
Quando você entrou em mim como um Sol no quintal
Aí um analista amigo meu disse que desse jeito
Não vou ser feliz direito
Porque o amor é uma coisa mais profunda que um encontro casualAí um analista amigo meu disse que desse jeito
Não vou viver satisfeito
Porque o amor é uma coisa mais profunda que um transa sensual
Então, sem se importar com as formalidades do que quer que seja amor e profundidade, o eu-lírico só quer viver o momento junto da pessoa adorada, sem as definições que colocamos, mas apenas como um momento íntimo entre duas pessoas que se querem muito.
Deixando a profundidade de lado
Eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia
Fazendo tudo e de novo dizendo sim à paixão, morando na filosofia
O eu-lírico, acredito, está no início da paixão, quando tudo é carne, saliva e necessidade feroz. Quando tudo é urgência, para sempre e a quentura dentro de si. Quando tudo é acelerado: o coração, os pensamentos e os planos. Quando não importam distâncias, as consequências e os defeitos. Mas o analista alerta: sexo não é amor, porque amor é algo mais profundo; não há felicidade real no efêmero, naquilo que não se sabe se vai durar, se vale a pena arriscar, que não sabemos aonde vai dar, se vai ser amor verdadeiro. O sexo pode ser uma parte muito profunda do amor, mas isolado, é uma outra coisa.
Mas o que é o amor? Quando é o amor? A paixão cintilante e incendiada deixa de existir no amor? O coração acelerado, a necessidade do encontro mesmo estando do lado ainda pode existir no amor? Tem como marcar no calendário quando o amor acontece? Tem como fazer bodas de profundidade? Quais são as palavras que mudariam tudo? Quais são as palavras e atitudes que nos fariam nos afogar na profundidade ou querer abrir mão dela? Quais são os sinais de que estamos voando e não caindo? De que estamos atravessando os dolorosos percalços da vida adulta e mesmo assim entrando (e se entregando, e se afogando) no estágio do amor ao invés de estar indo a toda velocidade de encontro com um poste (o risco da paixão)?
Eu não sei.
Talvez o analista esteja errado. Talvez Belchior esteja errado. Talvez eu esteja errada.
Eu quero gozar no seu céu, pode ser no seu inferno
Viver a divina comédia humana onde nada é eterno
A vida humana é andar sobre uma corda bamba. É viver na ameaça do pior ou melhor que pode acontecer. E nas relações afetivo-sexuais não seria diferente. É tão entranhado em nós essas necessidades, profundas ou não. Amor é isso, sexo é aquilo, e coisa e tal, mas quando ambos estão juntos… se mergulha na profundidade…
Só o amor trará a verdadeira felicidade? Sem ele viveremos insatisfeitos? Amor e sexo é uma coisa, paixão e razão são outras. Tudo separado. Tudo muito junto.
O amor é algo muito grande, que sai do corpo —território da paixão fulminante — e da mente, e se expande para além do telhado cerebral, ultrapassa o universo galáctico dentro de nós mesmos.
Eu não sei de nada. Poesia barata.
P
R
O
F
U
N
D
I
D
A
D
E
Eu quero também. Eu deixo também.
Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso
Eu vos direi no entanto (também versos de Olavo Bilac)
Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não
Eu canto
Ainda ouço estrelas! Tento recuperar meu senso! Ainda também bang, bang, kiss, kiss. Visito o céu. Visito o inferno. O aqui-purgatório. Tento deixar a profundidade de lado, mas a busco como estrelas-do-mar se afogando. Eu neste mundo onde nada é eterno, vivendo minha divina comédia! Eu tão cheia de angustias, melancolia, medos abismais. E uma fagulha. Sim! A fagulha! Um sol minúsculo em meu coração, essa cratera. Condenada. Salva.
Talvez o analista esteja errado. Talvez Belchior esteja errado. Talvez eu esteja errada.
◖Indicações de livros, matérias, entretenimento, newsletters ou outros coisas
uma carta que pode nos ensinar sobre escrita, duas newsletters, um curso de escrita, o novo livro da Dia Nobre e a série Insecure
◖Essa carta de Chico Buarque para Vinicius de Moraes defendendo o título e a letra de Valsinha, para a qual Moraes sugeriu algumas mudanças, é uma aula de como devemos conhecer bem a literatura que escrevemos, e de como devemos defender nossas ideias. Ninguém conhece (ou não deveria conhecer) as nossas histórias melhor do que nós mesmos.
◖A Gabriela Lagemann falou um pouquinho sobre a profundidade que há em alguém que lembra de comprar o papel higiênico e escreveu essas poesias.
◖A Raisa Monteiro falou sobre sonhos indecifráveis e só lembrei dos meus incontáveis sonhos amamentando babys ou sendo alvo de tiros que nunca me acertam.
◖A Fabiane Guimarães está com inscrições abertas para seu curso Como escrever e publicar um romance contemporâneo!
◖A Dia Nobre está com seu livro Incêndios da Alma em pré-venda. Corram lá pra conhecer a história da beata Maria de Araújo, que testemunhou um milagre em Juazeiro do Norte, mas que teve seu nome apagado da história.
◖Comecei assistir a série Insecure (Netflix e Max), que conta a vida de duas melhores amigas afro-americanas também vivendo a comédia humana. Achei uma misturinha de Sex and the city, Chewing Gum e Cara gente branca, mas com sua própria personalidade. Amando!
◖Na edição anterior de Tempo estranho
falei de Fortaleza e sua relação com o meu primeiro romance (em processo de escrita)
◖Você também me encontra aqui:
Até a próxima!
Eu tbm tenho um crush no belchior kkk <3
que texto! não conhecia a música e fui correndo escutar