Desobediência, ferocidade e insubmissão
Toda honra e gloria a Eva, a todas as mulheres que diariamente sobrevivem ao patriarcado e suas violências
Assisti o filme How to have sex, da diretora Molly Manning Walker, disponível no MUBI. Nele, três amigas britânicas viajam de férias, uma delas, a protagonista, com o objetivo de ter sua primeira experiência sexual. No hotel, conhecem dois rapazes, todos viram amigos, saem para curtir juntos, rola umas paqueras entre todos. Tudo muito vivo, efêmero, divertido. Tara se interessa por um dos rapazes, mas após vê-lo recebendo sexo oral numa festa — numa competição na frente de todo mundo —, acaba o encanto. Então, sua atenção vai para o outro amigo, um bem galera, bonito, que parecia decente. Ele a leva para a praia, ele a beija, ele a deita na areia, ele tira sua calcinha, ele enfia seu pau. Tara não consegue dizer não. Ela não estava entendendo. Ela não sabia ainda o que estava sendo feito ao seu corpo, na sua primeira vez. Devia ser daquela forma mesmo? Ela parece anestesiada após o ocorrido. Se perdeu das amigas. Encontrou outra turma e foi se divertir com eles. Ela queria esquecer o que aconteceu. Ela vira a noite com essas pessoas e só volta pro apê no outro dia, chorando. Ela não diz nada as amigas — que só deram por sua falta de manhã. Todos continuam indo curtir juntos, mas o brilho de Tara, a vivacidade, morreram na praia. Então, em outro momento, tentando dormir, o cara entra no quarto dela e tenta dar suas investidas de novo, mas Tara não quer. Ela dorme. Ela acorda com ele a penetrando — estuprando. Os amigos de ambos entram no quarto, não percebem, ele se afasta, todos deitam na cama. Tara desaparece dentro de si. Apenas no aeroporto, voltando pra casa, ela conta pra uma das amigas o que aconteceu, e essa amiga da o nome do que aconteceu. Não foi sexo. O filme acaba.
Eu tenho uma profunda indignação com a história de Eva, da Bíblia. Apesar de considerar um mito, me contorço toda vez que alguém a responsabiliza pela queda de Adão — e da humanidade — e como essa narrativa é comprada até hoje. Eva, sozinha no Éden com um homem que não assume seus BO, e com um deus, que tem a figura do masculino. Eva não tinha a menor chance. Condenada. Seu desejo seria para Adão. Ele a dominaria! Deus a sentenciou. A todas nós. Eva, minha querida Eva! Sem chance de defesa, de ser ouvida, de ser amada, de ser tolerada. Cortada pela raiz.
Fui apontada, por um alto declarado masculinista, de querer ser um homem. Eu fiquei pensando: imagina ser perdoada por absolutamente tudo que eu fizesse de merda nessa vida com a desculpa de que sou apenas um homem em desconstrução? Seria legal, né? Ele também disse que eu odeio os homens. Eu não odeio homens — estupradores, pedófilos e feminicidas, sim. Acredito que muitos homens estão dispostos a serem aliados, que muitos estão dispostos a estarem do nosso lado e nos tratar como seres humanos e não como uma vagina. Acredito que podemos encontrar amor, apoio, decência e admiração no comportamento de um homem. Que podemos encontrar gentileza e força para continuarmos a nossa luta dentro do patriarcado. Eu acredito. Eu só não espero. Enquanto mulheres forem estupradas, agredidas, aterrorizadas, difamadas, subjugadas e assassinadas por homens, é do lado delas que vou estar. Sempre. É nelas que vou acreditar. É pela libertação delas que vou esperar. Pela minha.
Assisti a série Grand Army, disponível na Netflix. Ela acompanha a história de um grupo de adolescentes e algumas violências que eles sofrem. Tem uma personagem que tem um grupo de amigos homens. Joey se acha o máximo. Ela é um dos caras. Ela não é qualquer garota. Um dia, voltando de uma festa, no banco de trás do táxi, eles começam a apalpá-la. É uma cena terrível. Ela não entende o que está acontecendo. Aquilo não podia estar acontecendo. Ela era uma deles! Eles a sentam no colo de um, enquanto os outros dois mantém suas pernas abertas. Eles a penetram com os dedos. Um total vandalismo da sua intimidade. Ela tenta se esquivar, não gosta da “brincadeira”, mas não consegue dizer nada mais além disso. O taxista, omisso, não diz basta. Homens não entendem o vocabulário silencioso de uma mulher sofrendo violência. Ele não a defende, apesar de parecer que tem algo de errado. Mas ele não faz nada. Para o carro e manda aqueles arruaceiros saírem. Jovens! Ela entra num estabelecimento e vai ao banheiro. Está sangrando. Ela não consegue nomear o que aconteceu. Mas seu corpo e seu psicológico, pouco a pouco, vão mandando sinais de alerta. Um pedido de socorro. Nos dias que seguem, ela vai para a escola, tenta fingir normalidade, os caras a abraçam, brincam, ela é a grande amiga deles! Tudo normal. Tudo certo. O que aconteceu foi só um passo a mais naquela amizade. Coisas da vida. Ela ainda não consegue falar, mas seu corpo fala. Seus olhos gritam. Quando está pronta, os denunciam.
Homens: não, vocês não são feministos.
Esses dias, lendo esse texto da newsletter Aventuras da mulher de 30, me deparei com o seguinte esclarecimento: Mulheres, os homens que vocês amam já podem ter sido o carrasco da vida de outra mulher. Vocês entendem? Os homens que vocês amam podem ser a "versão melhorada" (contém uma boa dose de revirada de olhos) de alguém que já foi terrível, imperdoável. Os homens que vocês amam já pode ter gritado, ameaçado, iludido, se vingado, menosprezado, humilhado, xingado, manipulado, falado da intimidade pros amigos, se aproveitado de uma posição de poder (idade, cargo ou dinheiro) para assediar. Vocês conseguem entender isso? Sabe, aquela ex-louca? Ela era louca mesmo, ela tem mesmo inveja de você, ela quer mesmo roubar o seu homem? Jura? Cuidado, mulheres. Muito cuidado. Não se joguem na fogueira para defender homens adultos e responsáveis por seus atos. NÃO BRIGUEM POR HOMEM! Se mantenham lúcidas e ATENTAS. Se mantenha, acima de tudo, informadas das diversas armadilhas do machismo e seus mecanismos, sobretudo aqueles que usamos para sobreviver nesse mundo que não ama as mulheres.
Também fui esclarecida de que mulheres de caráter duvidoso ou escancarado também sofrem violência masculina. Amber Heard não foi poupada e Blake Lively não está sendo. Essa newsletter pode ajudá-los a entender melhor.
A vítima perfeita é ilusão. A condenada perfeita é você ser mulher. Não importa se você é uma babaca ou se foi criada pelas mãos de Deus.
Em nome de Deus e do cristianismo, tantas mulheres foram desumanizadas ao longo da história. Todo aquele fogo, aqueles gritos, aqueles pedidos de misericórdia. Toda aquela raiva e dor incompreendida, trancafiada em sanatórios, em casamentos. Todo aquele desejo dizimado pela culpa, pelo medo. Tantas. Incontáveis! A quem farei uma prece? A QUEM?! Sigo condenada.
Mulheres escritoras, usem seus dedos para escrever, sim, mas os usem para estrangular o machismo com suas palavras também. Vocês têm esse poder.
Que não usemos a capa do feminismo para defender o indefensável. Não usem o feminismo em vão! O feminismo é a nossa arma, a nossa voz, a nossa luta. O feminismo é também para, com um pouco de sorte, trazermos mulheres de volta à lucidez.
Que aprendamos a formar um FEROZ INSTINTO DE SOBREVIVÊNCIA. Dentes expostos. Afiados. Carnívoros.
Toda honra e glória a Eva, ao meu corpo-alvo, a todas as mulheres consideradas pecadoras. Às mulheres: desobediência, ferocidade e insubmissão. Amém.
◖Indicações de livros, matérias, entretenimento, newsletters ou outras coisas
algumas newsletters, uma matéria, um reels
◖Maíra Ferreira, do Café com caos, e uma recusa à solidão;
◖Tracy Clark-Flory, do TCL Emails, e a iniciação de Zuckerberg na masculinidade;
◖A excelente escritora Monique Malcher está em terras de Substack! Conheçam Afiada;
◖Nádia Camuça, da Pausa, e Neil Gaiman e noções de consentimento, bdsm e people pleaser;
◖Renata, do Correio do sul do sul, e sempre tem um homenzinho;
◖Gabriela Zambiazi, da Jangada, e um protetor labial achado no metrô de Londres;
◖Embora algumas pessoas estejam tentando fazer parecer que aqueles que estão debatendo sobre o CPF na nota estejam fazendo fofoca de quinta categoria sobre a “vida alheia”, a jornalista Marília Kodic, à revista Marie Claire, fala sobre esse caso intolerável.
◖Os perigos nas “dicas sentimentais” que dizem para as mulheres se fazerem de difíceis na paquera.
◖Na edição anterior de A adulta
um monólogo de aniversário
◖Você também me encontra aqui:
Até a próxima!
anny, fico toda boba quando você menciona um texto meu, juro!🥹 e compartilho essa ânsia por proteger/vingar a primeira mulher, Eva é uma injustiça guardada na garganta das mulheres
deve ser extremamente cansativo viver sempre com o peso de uma ameaça que nem sempre se sabe de onde vem...