Escrever é uma palavra-músculo. Há de se exercitar muito!
Chegando em uma parte importante do meu romance, aquele após a primeira metade em que tudo parece muito crítico, muito perigoso e muito assustador — ao menos para mim —, tenho buscado um pouco de apoio nos ensinamentos dos que escreveram antes e que permanecerão muito. Algumas cartas contém bons pontos de vista para seguirmos ou ajustarmos a nossa realidade, falam de amizade e apoio mútuo, desabafos e inquietações.
A escrita enquanto força, conhecimento, medo, amor, um lugar, entranhas, destino. A vontade de fazê-la coisa real.
Quero começar com um trecho da carta de Lygia Fagundes Telles para Érico Veríssimo, em 1943, e acredito que todo escritor — que não vive de escrita — e que precisa enfrentar o mercado de trabalho para pagar as contas e sustentar a vida muito adulta, pode se identificar. Nos meus anos na UFC, estudando para o meu ofício de secretária executiva, usei de inúmeras aulas para escrever e rascunhar pequenas histórias e poesias. O desejo de ser uma escritora crescia muito mais que o desejo de qualquer outra ocupação. Com os pés no chão fiquei, mas os dedos cavaram fundo e arrancam a palavra de dentro de mim.
Trechos ou capítulos inteiros de possíveis romances, contos e planejamentos foram escritos no ônibus, nas notas do celular, enquanto eu ia para o meu destino CLT — até hoje. Horas de almoço também. Um minuto entre escrever ofícios e e-mails também. Meus dedos de escritora batendo o ponto da empresa todos os cinco dias úteis da semana, mas também os exercitando para a literatura.
Erico Verissimo, estou numa sala onde trabalho, isto é, onde devo deixar todos os dias num livro, fincado como um marco, o vestígio da minha passagem. Em outros termos, funcionária pública, a pior funcionária pública que existe no mundo. Leio romances enfurnados na gaveta, tenho o ar dolorido para que não me deem serviço e, quando me obrigam mesmo, faço que nem o meu nariz, só para que não caiam na tolice de me utilizarem de novo. Ainda por cima, escrevo meus contos nesses blocos oficiais que – diga-se de passagem –, são feitos de ótimo papel. Veja você que horror!
Na carta de Drummond para João Cabral de Melo Neto, em 1942, já somos acertados com a opinião de que tudo que foi escrito deve ser publicado. Aqui, já entro com um meio termo, pois acredito que o escritor deve procurar ter bem definido — e não que não possa ser modificado em algum momento ao longo da caminhada literária — o seu projeto literário, para então decidir pela publicação ou engavetamento de uma história. Temos muitas ideias, mas nem todas precisam ser desenvolvidas. Nem tudo precisa ser dito, muito menos publicado. Um grande texto publicável pode vir de um esforço literário imenso assim como de um dia de tédio. A coisa escrita, “nascida” de um parto dolorido ou não, às vezes é só para nós mesmos. Para os nossos processos e aperfeiçoamentos, sem a necessidade do olhar do outro. Sem a necessidade do dito: escrevi! Mas para Drummond, isso seria narcisismo ou covardia.
Sou de opinião que tudo deve ser publicado, uma vez que foi escrito. Escrever para si mesmo é narcisismo, ou medo disfarçado em timidez. Sem dúvida, todo sujeito honesto escreve por necessidade, mas nessa necessidade está latente a ideia de comunicação. Os outros que gostem ou não gostem. A reação do público evidentemente interessa, mas não deve impressionar muito o autor. Daqui a vinte, trinta anos que ficará dos nossos atuais pontos de vista e juízos críticos? As obras terão que ser examinadas de novo. E então haverá uma importância maior no julgamento, ao qual, provavelmente, não estaremos presentes.
Eu tenho dentro de mim uma certa vontade da validade dos concursos, de almejar os prêmios, não vou mentir. Mas essa vontade não é o suficiente para se tornar um beco sem saída dentro de mim. De congestionar meus caminhos na literatura em busca dessa linha de chegada. Não vou chegar, muito provavelmente. Os números da Mega-Sena literária são mais difíceis de acertar. Acho que todo escritor, experiente ou não, já desejou isso. Como já comentei outras vezes, parece que tudo que está sendo escrito e ovacionado na literatura brasileira atualmente precisa ser muito "profundo", muito importante e muito político. É uma onda? Não sei. Ainda quero escrever sobre amores adolescentes nessa primeira parte do meu projeto literário.
Ainda quero escrever poesias sobre o peso da vida.
Se lhe desagradar a opinião dos jornais e revistas, não publique para eles; publique para o povo. Mas o povo não lê poesia… Quem disse? Não dão ao povo poesia. Ele, por sua vez, ignora os poetas.
E eu gostei dessa sugestão que também leio como uma crítica atualíssima:
Já meditou na fascinante experiência que seria fazer livros de custo ínfimo, com páginas sugestivas, levando a poesia moderna aos operários, aos pequenos funcionários públicos, a toda essa gente atualmente condenada a absorver uma literatura de quarta classe porque se convencionou reservar certos gêneros e tendências para o pessoal dos salões e das universidades?
Abri espaço aqui para esses escritores de música: a carta de Chico Buarque para Vinicius de Moraes, escrita em 1971, na qual Chico defende a letra e o título da música Valsinha. Aqui fui lembrada da importância de conhecer bem o que escrevo, mais do que qualquer pessoa — ainda que essa outra pessoa seja muito experiente e me aponte melhorias, mas que eu possa saber defender o que propus, seja num texto do tamanho de uma música ou de um romance.
Devemos conhecer nosso projeto literário para que ninguém fale por nós, temos que ser íntimos dos nossos personagens e de seus propósitos, os descritos e os que ficam subentendidos. Aqueles que vão até o fim da história e aqueles que sustentarão a história pelo tempo incontável.
Valsa hippie é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo o que há de hippie à venda por aí. Valsa hippie, ligado à filosofia hippie como você o ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser a filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. A sua solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippy. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia.
Chico conhecia muito bem seu personagem, ao ponto de saber que esse nem de poesia gostava, pois não a conhecia. Era uma bancário. Isso que é domínio sobre o que se escreve! Isso é o que separa um escritor que inventa uma história para um que a conhece.
No trecho da carta trocada entre Jorge Amado e uma leitora, em 1970, temos uma verdadeira aula de como nós, escritores, devemos buscar intimidade com o ambiente da história, principalmente quando estamos falando de nosso estado/cidade/bairro. Fala sobre como devemos conhecer a nossa gente, nossos custemos e jeitos.
No meio independente, principalmente dentro da literatura juvenil ou YA (como já se popularizou aqui) muitas autoras usam da ambientação estrangeira para escrever suas histórias, e eu acho isso uma pena. O Brasil é rico de cultura em nível nacional e regional. Não quero pegar um livro de uma autora nacional (principalmente indie) e ler os Estados Unidos ou a Inglaterra. Quero ler o Brasil! Quero saber da Maria, não da Mary.
Ai do artista que pretenda criar fugindo ao espetáculo de sua gente, desprezando, por apenas pitoresca e decorativa, a realidade ambiente, que imagine desligar os grandes problemas do homem, os chamados problemas eternos, do contorno de um tempo determinado e de uma ambiência local, ai de quem imagine poder existir o eterno sem o temporal.
Certos jovens, armados com a natural suficiência da idade, com a fragilidade e a necessidade de afirmação da juventude, acreditam possível abandonar por inútil ou desprezível valores de ambiente, de costumes, de tradições, limitando-se a uma propalada vida interior, desligada da realidade e da originalidade nacionais, como se o homem fosse sozinho ou vivesse fora do mundo. O resultado é uma literatura mofina e chata, apenas pernóstica em suas intenções e ambições, não indo além de projetos fracassados.
E por último, deixo esse trecho da carta de Caio Fernando Abreu ao seu amigo José Penido, em 1979, para quando te encherem o saco ou você tiver duvidas sobre seus projetos.
Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios.
Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco.
O escritor e sua escrita. A vida acontecendo entre ambos. Escrever é uma palavra-músculo.
Exercitem-se!
◖Indicações de livros, matérias, entretenimento, newsletters ou outros coisas
um ensaio sobre a escrita dos cenários e quando são um excesso, duas newsletters e os títulos dos livros de Isaac Asimov
◖Esse ensaio de Willa Cather, publicado no Jornal Rascunho, sobre escrita da ambientação da história.
◖Essa newsletter da Bárbara Bom Angelo sobre e-mails enquanto espaço de literatura. Assim como nas cartas!
◖Essa newsletter do Christiano Aguiar sobre a pesquisa de campo e a escrita ficcional.
◖Nessa thread falei sobre como os títulos dos livros do Isaac Asimov são impactantes — O fim da eternidade ou O sol desvelado, por exemplo — e teve uma repercussão bem fora da curva da minha flopagem habitual.
◖Na edição anterior de Tempo estranho
falei da música Divina comédia humana, de Belchior
◖Você também me encontra aqui:
Até a próxima!
Que maravilha esses trechos todos de cartas.
Ótima curadoria, Anny. Me acabei de rir com a desídia de Lygia no serviço público.
Drummond e João Cabral perfeitos.
um beijo.
sábios conselhos dos escritores que nos precederam…