Eu e a cidade
Por uma literatura nordestina, brasileira e planetária: conheçam o Manifesto Siriará, que fez parte do movimento literário cearense no final da década de 70
Recentemente li o livro A afilhada, do cearense Oliveira Paiva1 — escritor que também dá nome a uma das principais avenida aqui de Fortaleza, embora ele próprio não seja conhecido. No livro, temos um personagem chamado Vicente, mais conhecido como Centu, que depois de uma temporada no Rio de Janeiro volta para Fortaleza com um certo ceticismo que aqui tenhamos um progresso social e uma produção intelectual de valor..
Em uma conversa com uma das co-protagonistas, Maria das Dores, Centu confessa pouco ler José de Alencar, um dos principais escritores no Brasil já à época da narrativa, e que por si só já poderia lhe provar o grande domínio literário cearense e a nossa tal intelectualidade. Mas Centu ainda não tinha se descoberto fortalezense, ele foi buscar em outro estado a Ciência que ele julgava aqui não ter. E como ele, tantos.
Fortaleza, essa desprezada. Ela própria que esconde seus feitos de nós mesmos, seus moradores. Ela tão desconhecida, uma “afilhada” com a qual poucos se importam, como bem me esclareceu Tiago Coutinho Parente com a sua dissertação2 de mestrado, na qual tenta desvendar a Fortaleza no romance de Oliveira Paiva, e que foi uma das melhores leituras acadêmicas que fiz na vida — me aprofundarei nisso em outra newsletter. Mas esse trecho me encheu de preocupação e pesar:
Pois a Fortaleza de Oliveira Paiva convive com o contraste e parece que seus moradores não percebem. Seu moradores, na maioria das vezes, estão preocupados com o seu umbigo, seus desejos e sua promoção pessoal. As personagens não possuem a sensibilidade de seu autor. Às vezes, fico a pensar se a Fortaleza de Oliveira Paiva merece crescer. Talvez, mereça sempre ficar na mesquinharia onde se encontra, pois as pessoas que vivem nela não fizeram nada a favor do progresso, da civilização e, por fim, da coletividade.
É essa Fortaleza negligenciada por tantos que quero povoar no meu projeto literário. Tomei isso como missão. Essa Fortaleza da qual muitos fogem ou são forçados dela partir. A tal vida maravilhosa, seus habitantes vão buscar em outro lugar. Distante. Lá em São Paulo. Lá no exterior. Lá por ali. Lá acolá! Minha Fortaleza, ninguém quer orientá-la, tal qual uma menina que não sabe o que fazer com seu “corpo” em desenvolvimento. Essa cidade que ainda parece presa numa puberdade centenária.
Fortaleza, ninguém se importa contigo? Do político ao cidadão comum, do pobre à elite. Ninguém parece querer te apadrinhar. Muitos dos nossos escritores também.
Esse Ceará, também desconhecido por si próprio, está muito bem resumido e expressado por esse outro trecho do Manifesto Siriará:
A Província do Ceará não interessou nem ao colonizador português - mera passagem para o Maranhão. Até que os aventureiros farejaram prata (inexistente) em Maranguape e os Jesuítas farejaram almas e fertilidade na Ibiapaba. Até que a seca se transformou em indústria de malversação de verbas e de interesses demagógicos. Até que a indústria americana descobriu a cera que a carnaúba chora. Agora temos praias, rendas, literatura ´regional’, ministros, jovens compositores, ´super stars´ do cinema, o mito de Iracema. Petróleo em Paracuru e urânio em Itataia.
(…)
Parodiando Jáder de Carvalho: o cearense já foi surpreender a puberdade da Amazônia e do ´boom´ industrial paulista. Seringueiro, pau-de-arara, bóia-fria. E sua inteligência acompanha a mesma vocação expansiva da mão-de-obra. Em êxodo, diáspora, dispersão, esgota sua força e nem ao menos se reconhece.
A descoberta de Afilhada me fez ir atrás de mais e mais conhecimento sobre a literatura cearense, principalmente essa que me apresenta uma Fortaleza desconhecida, não aprendida na escola ou nas histórias de família, o que me levou a descobrir o grande acervo de referências que provam a nossa enorme e complexa produção intelectual, mas que quase ninguém ouviu falar ou se interessa de saber.
Como por exemplo, o Manifesto Siriará.
Em 1979, o Grupo Siriará lança o seu Manifesto, escrito por importantes nomes como do escritor e poeta Adriano Espínola, Carlos Emílio Correia Lima e Jackson Sampaio. O Manifesto Siriará foi aprovado e assinado no dia 14 de julho de 1979, e contou com as assinaturas de diversos escritores3 que o elaboraram quase como uma convocação a um fazer literário não só nordestino, mas brasileiro. Atual. Uma literatura sem os moldes já tão usados e imitados da literatura da Europa e dos EUA, de outras regiões do país. É um pedido de valorização do fazer literatura ao estilo nacional, com nossos modos, cultura, linguagem e estilo próprio. Regional, mas além: planetário!
Para esclarecer a palavra Siriará, que só depois de muito pronunciá-la agora fica fácil na minha língua, o escritor João Brígido explica o significado:
(…) a palavra primitiva ouvida ao índio era ciri-ará.” E esmiuça a formação da palavra: “Ciri, na língua guarani, quer dizer andar para trás e o selvagem, fazendo dum fato uma substância, chamou a todo câncer marítimo ou caranguejo-ciri.” E mais adiante: “ará é adjetivo significando claro, branco, alvacento, etc, etc.” O "C" primitivo de ciri transmudou-se depois no "S" de siriará para, em seguida, por síncope, dar Siará. Uma revanche fonética trouxe de volta o "C" e deu Ciará. E, por último, Ceará, apesar de o povo continuar a pronunciar Ciará.
E complemento com esse trecho do Manifesto:
Mas SIRIARÁ é também um arcadismo exótico, com intenção de resumir o conflito numa só palavra sonora, com intenção de atrair o gosto do ´mercado´ carente de sabores fortes. Não nos furtamos ao exercício da contradição.
Ser escritor é esquadrinhar, intuir, profetizar; é sujar-se na lama das décadas e dela fazer surgir a flor da estética. Ser escritor é tentar colocar sobre a dor a estética da dor.
Não vou transcrever de forma integral o Manifesto, porque o texto ficaria muito extenso, então optei por deixar trechos pelo caminho, como migalhas para que vocês me sigam até os quatro pontos principais que quero compartilhar. Para lê-lo na integra, o escritor Batista de Lima, que assinou o manifesto à época, o disponibilizou aqui, e garanto a vocês, principalmente quem for do Nordeste, que é uma leitura riquíssima para nos fazer pensar muito, principalmente pensar nossa responsabilidade com a literatura nordestina e brasileira!
Pois, como podemos ler neste outro trecho da apresentação do Manifesto:
O ´mercado´ literário nacional espera de nós a caricatura de nossa realidade, o exótico, o folclore do áspero, do seco, do faminto, do sem terra; espera de nós cacto, cangaço e coloquialismos bizarros. Somente dentro desta roupagem nos permitem lançar nacionalmente nossa ´mercadoria´.
E tantas décadas depois, isso ainda não mudou. Como bem complementa esse trecho do texto do Tiago Germano:
(…) a um nordestino se pede que ele escreva sobre o Nordeste, e não qualquer Nordeste, mas o Nordeste que o Sul e o Sudeste acham que é o Nordeste, o Nordeste que eles gostam de ler.
Então, vamos aos quatro pontos que eu tanto queria compartilhar com vocês, e que eles possam lhes abrir olhos, mentes, corações e que despertem e acolham a intensa necessidade da escrita e da produção literária nacional:
Contra a ritualística de um passado que formal e conteudisticamente não mais representa a realidade nordestina do momento. Viva Graciliano, José Américo, Zé Lins do Rego, O Quinze de Rachel, João Cabral, Grupo Clã... Viva. Como lição, roteiro, experiência. Superação, não supressão. A seca e o sonho continuam. A favor de um texto terra (conteúdo); de um texto mestiço (forma); de um texto Siriará (intenção e linguagem).
Contra o colonialismo interno do sul e a condenação regionalista da literatura nordestina. A favor de uma literatura sem vassalagem, nordestinagem, inferioridade. Pensar e sentir o Nordeste e ter o direito de perguntar pelo Brasil. E não somente o Nordeste, território à parte.
Contra modelos e formas de pensar e escrever importados – impostados, impostos – pastagem alienante da culturália tupiniquim mal pensante. A favor de uma literatura brasileira brasílica. Autóctone. Sem totens nem tabus. Sem “fervor reverencial” à cultura da solene mamãe Europa e adjacências e/ou do executivo caubói do Arizona. O universo situado a partir de um discurso e uma linguagem crítica que reflitam a nossa própria situação/condição histórica. Pensar e sentir o Brasil no mundo. E o mundo no Brasil. A favor de uma escritura nordestina/brasileira, brasileira/planetária. Força centrípeta e centrífuga da linguagem. Da literatura. Da História. Da sabedoria cosmo-nativa.
Contra toda forma de opressão, de repressão política e/ou cultural. Fora, fuuu – a máscara policialesca da moral e dos bons costumes (literários). Fora a censura planaltina. Fora, fuuu – todas as patrulhas. E todos os pulhas ideológicos e literários. Queremos a verdade e a sinceridade. Ainda que tarde. Pra tudo rimar com Liberdade. A favor de uma literatura de combate, de questionamento, de indagação. De si mesma. Do indivíduo. Da sociedade. Do Brasil D. R. isto é, Depois de Rosa. Aqui e sempre: AVE, PALAVRA.
O escritor é, acima de tudo, um nervo dolorosamente exposto.
Ave, palavra!
◖Indicações de livros, matérias, entretenimento, newsletters ou outras coisas
cinco newsletters
◖A Fabiane Guimarães, do Tristezas de Estimação, nos faz uma provocação com a pergunta: para quem você escreve?
◖A Gabi, do Tempo pra você, escreveu sobre refúgio criativo;
◖A Fal, do Drops da Fal, nos faz pensar sobre as escolhas na escrita, as que fazemos e as que nos encontram;
◖O Pedro Rabello, do Tudo bom e nada presta, escreveu sobre as “significâncias” de algumas palavras;
◖Em meio à escassez, a literatura - por Alan Santiago e Raphaelle Batista.
◖Na edição anterior de Tempo Estranho
um pouco sobre os perigos que nossos adolescentes correm, no mundo e dentro de si mesmos
◖Você também me encontra aqui:
Até a próxima!
◖Fontes de pesquisa
◖LIMA, Batista de. Manifesto Siriará. Batista de Lima, 2019. Disponível em:
◖MACIEL, Nilton. A revista O Saco e o Grupo Siriará. Literatura Sem Fronteiras, 2006. Disponível em:
◖SAMPAIO, Aíla. Literatura no Ceará. Fortaleza. INESP, 2019.
Obs: aos mais experientes nas normas da ABNT, me desculpem alguma falha.
◖Notas de rodapé
Manuel de Oliveira Paiva foi escritor cearense, nascido em Fortaleza em 1861. Fez publicações na revista cearense A Quinzena e nos jornais cariocas O Libertador e A Cruzada. Antes de morrer de tuberculose em 1892, publicou o romance A Afilhada, e postumamente foi publicado Dona Guidinha do Poço (considerado seu melhor trabalho).
O Manifesto foi assinado por: Aírton Monte, Antônio Rodrigues de Sousa, Batista de Lima, Eugênio Leandro, Fernanda Teixeira Gurgel do Amaral, Floriano Martins, Geraldo Markan Ferreira, Joyce Cavalcante, Lydia Teles, Márcio Catunda, Maryse Sales Silveira, Marly Vasconcelos, Natalício Barroso Filho, Nilto Maciel, Nírton Venâncio, Oswald Barroso, Paulo Barbosa, Paulo Veras, Rogaciano Leite Filho, Rosemberg Cariry e Sílvio Barreira.
Muita gente ainda não entendeu que existe sim literatura nacional feita para além do eixo RJ-SP. Na música acontece esse mesma questão de considerar nacional apenas as produções sudestina e regional tudo aquilo que o restante do país produz, considerando como algo exótico, a parte do Brasil.
Em alguns discos, artistas das regiões norte e nordeste já se manifestaram também sobre esse preconceito interno que temos aqui no Brasil. Ednardo, um cantor cearense (que eu amooooo), tem um disco, acho que é Imã, que traz um manifesto muito legal, abordando questões políticas e culturais, sobretudo o preconceito regional com os artistas do nordeste.
Adorei o texto, Anny, muito importante essa discussão.
Um beijo.
é mais do que necessário escapar do que se costuma vender como "literatura nordestina", em que tudo é seca, atraso e exotismo.